SERGIO CASTRO/ESTADÃO CONTEÚDO
A gestão da água não construiu um sistema interligado que equilibrasse demanda e estoque
O mito da estiagem de São Paulo
A natureza nada tem a ver com o desabastecimento de água na Região Metropolitana da maior capital do País
"Os sistemas Alto Cotia e Guarapiranga, por exemplo, estiveram, em 2014, com níveis de água superiores ao da Cantareira, que sozinha abastece cerca de 8 milhões de pessoas. Mas não puderam “socorrer” essa demanda por não estarem interligados."
Por Luis Antonio Bittar Venturi
Embora as fontes governamentais neguem, o racionamento de água em São
Paulo é uma realidade. Segundo pesquisa do Datafolha divulgada em 16 de
agosto, 46% dos entrevistados da capital relataram interrupção no
abastecimento nos últimos 30 dias. Em outros municípios da Região
Metropolitana, 37% alegaram problemas. Os gestores tentam atribuir a
falta de água à natureza (El Niño, aquecimento global ou simplesmente
porque choveu pouco são citados), mas as razões são fruto de um conjunto
de erros de gestão – do contrário, o racionamento não seria necessário,
sobretudo em uma região úmida como o Sudeste brasileiro. No texto a
seguir, o professor Venturi explica por que a falta de água em São Paulo
não é “culpa de São Pedro”.
A água é um dos recursos naturais mais abundantes no planeta e as
quantidades existentes sobram diante da necessidade humana. Mesmo
considerando apenas as águas doces continentais, 3% do total da Terra,
há muito mais água do que a capacidade humana de utilizá-la. Indo além,
apenas a quantidade de água que precipita anualmente só na superfície
dos continentes (cerca de 110 km3) já seria capaz, se fosse captada e
armazenada, de suprir toda a humanidade. Considerando a água
subterrânea, o Alter do Chão, maior aquífero do mundo sob a Bacia
Amazônica, armazena água suficiente (86 mil km3) para abastecer a
humanidade por pelo menos três séculos, já que ele é continuamente
recarregado pela infiltração de água proveniente da atmosfera e da
superfície.
Os estoques de água doce são inesgotáveis, na medida em que são
alimentados principalmente pelos oceanos, infinitos via evaporação e
precipitação, ou seja, pelo ciclo hidrológico, que
depende de forças físicas as quais o homem nunca poderá interromper.
Enquanto existirem, o ciclo funcionará e os estoques de água doce nos
continentes serão repostos indefinidamente.
O alerta de que a água vai acabar, portanto, não tem fundamento.
Obviamente que a água não se distribui equitativamente pelo planeta. Há
regiões com muita água, normalmente na zona tropical, na qual a
evaporação é maior, e regiões áridas, onde, por razões específicas da
dinâmica climática, as taxas de evaporação são maiores do que a
precipitação, gerando déficit de reposição de estoques de água doce.
Esse não é o caso de São Paulo, cidade situada em uma região úmida, com
elevados índices pluviométricos, em grande parte decorrente da umidade
trazida do oceano pelas massas de ar (veja as imagens de satélite do
Sudeste brasileiro e da costa da Namíbia, na África, nesta página).
Enquanto o Sol brilhar, a Terra girar e a Lei da Gravidade não for
“revogada”, as recargas de água doce na Região Sudeste estarão
garantidas, em volumes muito superiores à nossa necessidade.
Por que falta água em São Paulo?
Considerando apenas a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), há
mananciais na parte norte da região, a (Serra da Cantareira), e em toda a
parte sul, na região da Bacia do Guarapiranga, do Alto Cotia etc., além
de reservatórios (represamentos artificiais) que formam um sistema de
abastecimento. Além disso, São Paulo importa água de outras bacias, como
a do Rio Piracicaba, e como planeja fazer com a Bacia do Rio Ribeira de
Iguape.
Ocorre que, embora haja diversas fontes de abastecimento para a região,
elas não estão interligadas. Trata-se de um sistema desconexo, no qual,
se falta água em um reservatório por um período – como tem ocorrido com
a Cantareira –, não há como compensar esse déficit com a água dos
outros. Os sistemas Alto Cotia e Guarapiranga, por exemplo, estiveram,
em 2014, com níveis de água superiores ao da Cantareira, que sozinha
abastece cerca de 8 milhões de pessoas.
Mas não puderam “socorrer” essa demanda por não estarem interligados.
Havendo um período de estiagem natural mais prolongado, como tem
ocorrido na Cantareira, a retirada de água tornou-se mais intensa do que
a reposição natural dos estoques, daí o porquê de suas represas estarem
secas. A gestão dos recursos hídricos não foi inteligente o suficiente
para construir um sistema interligado que equilibrasse demandas e
estoques. Se assim o tivessem feito, jamais faltaria água em São Paulo,
pois o total de água existente em torno da RMSP é mais do que suficiente
para atender à demanda.
Outro fator auxiliar na compreensão da falta d’água em São Paulo
refere-se às perdas, que estão entre 27% e 30% de toda a água tratada.
Elas advêm, sobretudo, de vazamentos e de captações clandestinas,
embora, nesse último caso, apesar da ilegalidade, não há o desperdício,
não há perda de fato da água como há nos vazamentos. Alguém a está
usando, só que sem pagar.
Ainda na dimensão técnica, outro aspecto que nos ajuda a compreender
essa situação de escassez que algumas áreas de São Paulo estão
enfrentando refere-se ao bombeamento da água dos reservatórios. A sucção
do líquido atinge apenas as camadas superiores dos reservatórios, sendo
o restante chamado volume morto, fora do alcance das bombas. Mais uma
vez a gestão dos recursos hídricos não foi eficiente para prever que, em
caso de anos anômalos de menor precipitação, haveria a necessidade de
se bombearem as camadas inferiores – a previsão de anomalidades
climáticas deveria ser considerada em um planejamento de recursos
hídricos. A tentativa de corrigir a má gestão da água paulista chegou
tarde.
Complementarmente, o reúso ganhou espaço no debate com a proposta de
reservar a água potável apenas para os usos nos quais ela deve ser
realmente limpa e própria para o consumo. Infelizmente, isso só ocorre
no meio empresarial e comercial. A Sabesp, empresa de saneamento básico
de capital misto, cujo maior acionista é o governo de São Paulo, elabora
programas apenas para empresas, mas não para a população em geral, que
não recebe água de reúso em seus domicílios. Assim, a mesma água potável
que bebemos é a água que usamos para dar a descarga ou para regar
plantas, o que torna a economia no ambiente doméstico limitada a ações
como o aproveitamento da água de lavagem de roupa ou do quintal. Só
resta ao cidadão exercer o seu papel usando a água com racionalidade,
inteligência e parcimônia.
A falácia da Guerra pela água
Atribuir conflitos a uma eventual escassez atende
apenas a interesses midiáticos, políticos e ideológicos
Internacionalmente, não existem registros de conflitos por disputa de
recursos hídricos, apenas algumas tensões políticas ou diplomáticas em
alguns casos específicos. A maior parte das 261 bacias internacionais
existentes no mundo é gerida por meio de acordos que asseguram o
compartilhamento de suas águas.
É o caso do Tratado de Cooperação da Bacia Amazônica, o Tratado da
Bacia do Prata, a Comissão Internacional para Proteção do Rio Danúbio
(Europa), a Iniciativa da Bacia do Nilo (África), o Protocolo de
Damasco, assegurando o compartilhamento das águas do Rio Eufrates
(Oriente Médio), Tratado de Paz entre Israel e Jordânia acerca do
compartilhamento do Rio Jordão, entre outros. O mundo já entende que uma
bacia hidrográfica deve ser gerida enquanto sistema integrado,
independentemente das fronteiras políticas que possa abranger. Observe
que, mesmo em áreas onde o recurso hídrico é mais escasso, nunca houve a
chamada guerra pela água, nem há perspectiva de que haja, já que as
soluções técnicas e de planejamento estão se tornando mais eficientes e
mais baratas, sobretudo se comparadas aos custos de uma guerra. Paula
Duarte Lopes, em Água no Século XXI: Desafios e oportunidades, afirma:
“No que diz respeito à água, a última guerra – no sentido clássico do
termo – registrada teve lugar entre duas cidades-Estado na Suméria
antiga (Umma e Lagash), em 2500 a.C. Não existe qualquer registro
histórico de outra guerra entre entidades políticas autônomas ou
explicada por motivos hídricos”.
O especialista turco em hidropolítica Dursun Yildiz converge com essa
opinião ao afirmar que, “quando olhamos para os trabalhos acadêmicos,
podemos ver claramente que a tese da realização da guerra da água parece
quase impossível. Esse conceito é mais publicado em revistas e jornais
populares”. Afirmar que a água vai acabar, como já vimos, é uma
insensatez malthusiana, e atribuir conflitos a uma eventual escassez
atende apenas a interesses midiáticos, políticos e ideológicos, pois não
se assenta em base científica, mas a uma perspectiva fatalista que
talvez tenha maior valor
de mercado.
No Brasil, porém, a recente disputa entre os governos de São Paulo e
do Rio de Janeiro reveste-se de desconhecimento técnico e de interesses
políticos. Desconhecimento de que uma bacia deve ser gerida como um
conjunto sistêmico, cujo potencial hídrico pode ser medido em relação à
demanda e, dessa forma, ter as águas compartilhadas pelos estados. Essa
disputa é também revestida de interesses políticos, pois, alimentar o
discurso de que “estão roubando nossa água e não vamos permitir que isso
aconteça”, tem uma forte conotação emocional que pode facilmente ser
revertida em benefícios eleitorais. Não há o menor problema em
compartilhar as águas da Bacia do Rio Paraíba do Sul, como já se faz há
milênios em outras bacias, e como se está fazendo com o São Francisco.
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