Por que nossa política é tão burra?
O novato estava tão incomodado com o bate-boca no plenário da Câmara
que o veterano foi consolá-lo. "Olha, Tiririca, eu entendo seu
nervosismo", disse Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), descendente do
Patriarca da Independência, cuja família está na política nacional desde
1822. "É que você está acostumado com o circo. O circo é um ambiente de
paz, harmonia, alegria. E de organização. Aqui é essa baderna, essa
gritaria danada", disse o deputado de 83 anos e nove mandatos. Tiririca
concorda. "Nos três primeiros meses, fiquei muito acuado. Mas vi que
funcionava assim, e ponto", diz o segundo deputado mais votado da
história, com 1,35 milhão de votos (atrás apenas do falecido Enéas).
Mas, mesmo com tanta popularidade, Tiririca vai abandonar a política.
Quando o Partido da República o convidou a ser candidato, sua mãe o
convenceu a aceitar porque assim ele poderia "ajudar muita gente". "Só
que não é assim. É interesse próprio, é interesse de partido, é
interesse do governo." Na campanha, ele prometeu contar ao eleitor o que
fazia um deputado federal. Hoje ele sabe. "É uma pessoa que trabalha
muito e produz muito pouco."
Tiririca virou ícone da descrença na democracia brasileira. Da sua
eleição ao anúncio de volta à vida circense, a mensagem é a mesma -
"pior que está não fica". Mas será que as coisas vão tão mal assim?
Comparado aos nossos colegas emergentes, somos até uma democracia
admirável. Nossas eleições são livres. Nosso sistema de votação
eletrônica, embora peque em transparência, é referência mundial. Nossa
imprensa é independente, ao menos nas principais capitais. E temos três
poderes bem divididos. Ok, a presidenta tem grande poder - como
administrar um orçamento de R$ 2,3 trilhões e criar medidas provisórias
com valor de Lei. Mas, para servir de freio a ela há 513 deputados e 81
senadores que estão lá representando o povo e seus Estados. Sem a
aprovação deles, no Congresso, o Executivo não faz nada. No papel, é um
modelo lindo. Só que na prática eu, você e a torcida de todos os times
da pátria sabemos que a verdade não é bem por aí.
Tudo funcionaria bem, não fosse o fato de, em vez de um mandato, o
Congresso receber carta branca de seus eleitores. Sim, deixamos nossos
representantes fazerem o que quiserem com seus cargos. Passado um mês
desde a eleição de 2010, um em cada cinco eleitores havia se esquecido
em que parlamentar tinha votado, segundo pesquisa do Tribunal Superior
Eleitoral. Já o Estudo Eleitoral Brasileiro, feito pela Unicamp, mostra
que 70% esqueceram em 2010 em que deputado votaram quatro anos antes.
Não é que o brasileiro não sinta que seus representantes o representem.
Ele sequer sabe quem é o seu representante. E, sem isso, o congressista
não tem controle. Faz o que quer.
Vamos às urnas a cada dois anos, mas no resto do tempo não participamos
das escolhas feitas no bairro, na igreja, no trabalho e nos outros
espaços que fazem parte da nossa vida. "A política virou um departamento
à parte, dissociado da sociedade", diz o deputado federal Chico Alencar
(PSOL-RJ). "E o povo a vê como uma instância que não lhe diz respeito."
O resultado é que dificilmente a carreira política atrai as pessoas
mais capacitadas. Você tem algum amigo talentoso? Pois bem,
provavelmente ele não quer ser político. Em geral, pessoas talentosas
vão à universidade, escolhem uma profissão e vão brilhar muito em uma
empresa ou em qualquer espaço onde lhes deem recompensas mais imediatas e
palpáveis. A política é frustrante demais. Para entrar nela, é preciso
atravessar a piscina de lama do financiamento eleitoral. Depois, é
necessário lutar contra um grupo de pessoas que estão lá por motivos que
não são exatamente "a formação de um país melhor". A quem então
interessaria a profissão de suas excelências?
PIOR QUE O CONGRESSO, SÓ OS PARTIDOS
Porcentagem de avaliação boa ou ótima por instituição*
Igreja Católica - 68,5%
Rede Globo - 64,8%
Igreja Evangélica - 58,6%
Governo Federal - 49,9%
Grandes empresas - 47,5%
Congresso Nacional - 22,9%
Partidos Políticos - 19,4%
*Estudo Eleitoral Brasileiro, Centro de Opinião Pública, Unicamp, 2010
Bem-vindo ao zoológico
Poucos quilômetros passados desde o aeroporto Juscelino Kubitschek,
chega-se a um trevo no qual uma placa indica: "zoológico". Parece piada,
mas, se você seguir a indicação, chegará a Brasília. Como um zoológico,
a capital federal é isolada do hábitat natural da maioria da população
(a única região metropolitana a menos de 12 horas de ônibus é a de
Goiânia). Ao mesmo tempo, também reúne num pequeno espaço uma fauna
muito representativa da diversidade brasileira. Para garantir essa
representatividade, os espécimes expostos passam por uma seleção que
acontece a cada quatro anos: as eleições para deputado ou senador.
Em alguns países, como nos EUA, a eleição para a Câmara é como uma
competição de 100 metros rasos - cada cadeira representa um distrito,
disputado por alguns poucos candidatos próximos ao eleitor. Em outros
países, como a Espanha, é como uma prova de equipe - vota-se num
partido, que apresenta uma proposta política. Já no Brasil, temos uma
ultramaratona. São milhares de candidatos disputando as cadeiras de um
Estado inteiro, cada um correndo por si. Segundo o cientista político
Barry Ames, da Universidade de Pittsburgh, esse nosso sistema dá espaço
para quatro tipos de candidatos - e nenhum deles é aquele seu amigo
talentoso. Vamos chamá-los de Líderes de Entidade, Burocratas, Caciques e
Pastores.
Em regiões metropolitanas, quem tem mais chance são os Líderes de
Entidades: sindicatos, federação de indústrias, associações de
comerciantes e conselhos de profissionais. Essas entidades se organizam
em torno dos interesses de sua categoria e lançam líderes para
defendê-los em Brasília. Já em campanhas espalhadas pelo Estado, ganham
uma vantagem tremenda os Burocratas, como os secretários de educação ou
saúde. Eles são figuras que, por terem ocupado cargos estratégicos no
Executivo, têm uma grande exposição para a população - e acabam
lembrados na hora das urnas.
Agora, no eleitorado de municípios menores, quem ganha são os Caciques -
geralmente, membros de famílias políticas tradicionais na região. Uma
vez no poder, elas conseguem fortalecer sua influência alimentando seu
curral eleitoral com verbas federais. E, por fim, há uma última
possibilidade: juntar votos de algumas poucas pessoas que tenham algo em
comum, mas que estejam espalhados por todo o Estado. A princípio, isso
vale para qualquer minoria - vegetarianos, correntes ideológicas
radicais, descendentes de imigrantes, LGBTs... Mas para se eleger é
preciso mais do que uma identidade. É necessário ter líderes, uma
estrutura de campanha e uma rede de seguidores. Hoje, quem tem isso mais
bem organizado são os pastores de igrejas evangélicas.
Essa divisão tem um problema sério: o poder se torna um incentivo por si
mesmo. Só será eleito quem já tiver poder. Afinal, como competir com um
burocrata que tem a máquina pública a seu lado? Ou com um líder
religioso que controla as almas de seu rebanho? Diante do moto-perpétuo
político, não há espaço para pessoas com talento, nem para os interesses
do cidadão comum. Assim, a política deixa de ser um lugar para a
discussão de ideias ou para a construção de um país melhor - ela apenas
serve para manter as antigas e duvidosas estruturas. Ou seja, melhorar a
nossa vida não necessariamente está em debate por lá.
FAMÍLIA, FAMÍLIA
No Congresso, 92 deputados e 30 senadores são parentes de políticos tradicionais. O poder, afinal, circula nas veias.
SANGUE AZUL...
O deputado federal mineiro Bonifácio Andrada é do tempo do Império. Seu
tio trisavô, José Bonifácio de Andrada e Silva, é o cara que convenceu o
então príncipe regente Pedro a dizer ao povo que ficaria. Desde então a
família Andrada contou com 15 deputados e senadores, oito ministros de
Estado e dois do Supremo, além de governadores, prefeitos e vereadores.
Como ele faz isso? "Semanalmente vou a Barbacena, onde fica minha
família. Atendo o povo, faço reuniões políticas", diz. E a linhagem
segue forte com seus filhos Toninho e Martim Francisco (PSDB), prefeitos
de Barbacena, e o caçula Lafayette, deputado.
...OU VERMELHO
Alçada à política quando militava com as Comu-nidades Eclesiásticas de
Base em comunidades carentes, a família Tatto conquistou sua base
eleitoral na Capela do Socorro - uma região periférica de São Paulo
cinco vezes mais populosa que Barbacena. Levando serviços para sua base e
colhendo votos, a família tem hoje Jilmar Tatto (PT-SP) como secretário
municipal de Transporte de São Paulo, Ênio Tatto (PT-SP), deputado
estadual e Arselino e Jair como vereadores.
A corrida do ouro
Certo, sabemos o perfil de quem se elege. Mas, antes de começar a
eleição do voto, o candidato precisa vencer uma outra: a eleição do
dinheiro. Afinal, uma campanha é muito cara. Envolve gravações em
estúdio, organização de comícios, aluguel de carros de som e escritórios
em várias cidades. Quanto dá em média? Em 2010, cada deputado federal
eleito arrecadou em média R$ 1,1 milhão. Isso legalmente. Já ilegalmente
não dá para saber, pois a grana rola fora dos bancos, em maletas e
cuecas.
Quais as diferenças entre a eleição do voto e a da grana? Bom, na
primeira todo cidadão tem o mesmo valor: um único voto em um único
candidato. Já a eleição da grana é desigual. Quanto mais rico o doador,
mais ele pode doar - para pessoas físicas, até 10% dos seus rendimentos;
para empresas, até 2%. Isso significa o óbvio. Por exemplo, em 2010, o
ex-governador e um dos maiores produtores de soja do mundo Blairo Maggi
(PR-MT) teve direito a votar com muito mais dinheiro do que você, leitor
comum: R$ 779,8 mil do próprio bolso e R$ 435,5 mil do grupo
empresarial que ele controla. Hoje é senador, integra a bancada
ruralista e preside a Comissão de Meio Ambiente (apesar de ter recebido o
nada honroso prêmio Motosserra de Ouro, do Greenpeace, concedido a quem
mais destrói, justamente, o meio ambiente). Como é permitido doar a
quantos candidatos quiser, a maioria dos grandes financiadores
diversifica os donativos. Não quer vincular seu nome a um candidato
específico? Basta dar a grana para um intermediário - o comitê
partidário -, que depois a repassa para o candidato.
Em 2010, 91,3% do financiamento foi feito por empresas. Mas por que o
setor privado doa tanto dinheiro para um político se reeleger? Desejo de
fortalecer as instituições democráticas? Uhm, não exatamente. As
empresas que mais doam são também as com maiores interesses no governo.
Dos R$ 4,2 bilhões totais, R$ 400 milhões vieram de 14 construtoras -
sim, aquelas que mais tarde terão contratos para realizar obras
públicas. Outros R$ 155 milhões vieram de dez bancos privados, que
dependem da política econômica do governo. Ao que tudo indica, as
empresas não doam - elas investem.
Qual o impacto disso na política? O primeiro é um golpe na
credibilidade. Por que você compra a SUPER? Provavelmente porque você
confia nas informações aqui. Sim, os R$ 13 de cada exemplar são
salgados, mas é o preço que permite à revista ser independente. Se, para
escrever uma matéria, aceitássemos dinheiro de alguma parte
interessada, o preço da revista poderia diminuir - só que você deixaria
de confiar em nós. É o mesmo com a política. "Eu já recebi uma doação de
uma cervejaria. Mas aqui no Senado comprei uma briga para proibir a
publicidade de bebida. Os caras vieram falar comigo, me pressionaram.
Não mudei de posição", diz o senador Cristovam Buarque (PDT-DF). "Mas
duvido que voltem na próxima eleição, né?"
CORONÉIS ELETRÔNICOS
As famílias tradicionais podem ir além de seu reduto eleitoral com
uma ajudona: a mídia. Ao menos 60 parlamentares são donos de meios de
comunicação. Quem recebeu concessões de TV durante a ditadura e o
governo Sarney se destaca.
Família Magalhães (BA):
* Rede Bahia, afiliada à Rede Globo
* Jornal "Correio"
Família Franco (SE)
* TV Sergipe, afiliada à Rede Globo
* "Jornal da Cidade"
Família Collor de Mello (AL)
* TV Gazeta, afiliada à Rede Globo
* Jornal "Gazeta de Alagoas"
Família Maia (RN)
* Rede Tropical de Comunicação, com emissoras afiliadas à Rede Globo e à Record
Família Sarney (MA)
* Rede Mirante, afiliada à Rede Globo
* Jornal "O Estado do Maranhão"
Família Barbalho (PA)
* Rede Brasil Amazônia de Televisão, afiliada à TV Band
* Jornal "Diário do Pará"
Em Brasília, 19 horas
"A figura do político está mais por baixo do que umbigo de cobra. Você
vira um leproso quando é candidato. Chega a machucar", diz o deputado
federal Guilherme Campos, líder do PSD na Câmara. E depois de eleito?
"Aí, todo mundo é seu amigo." Portanto, aos eleitos, parabéns. Agora, o
parlamentar receberá uma bela estrutura do Estado para exercer suas
atividades. O salário é bom, mas não é de marajá. É próximo ao de
diretores de empresa: R$ 26,7 mil. Depois, será sorteado seu gabinete.
Se tiver sorte, ele irá para o anexo IV - um prédio com balcões de
companhias aéreas no térreo, elevadores exclusivos parlamentares,
gabinetes de 39 m2 e banheiro privativo. Se tiver azar, terá de se
contentar com o anexo III - o "favelão". Então, receberá belos R$ 78 mil
mensais para contratar a equipe de até 25 funcionários em seu gabinete.
E, para cobrir gastos com combustível, avião, telefone e divulgação de
suas atividades, há o "cotão" - uma ajuda de R$ 21 a R$ 44 mil. Somando
tudo, temos o segundo parlamentar mais caro do mundo, depois do
americano.
Mas o que ele consegue fazer com tudo isso? Se sua função fosse propor
projetos de lei, a coisa iria bem: em 2012 foram apresentados 1.841
projetos. Só que, deles, apenas 13 foram aprovados (e desses, quatro
foram originados no Congresso. QUATRO, sendo que um era para aumentar o
salário dos servidores do Senado). Em parte isso acontece porque uma
infinidade dos projetos é irrelevante - datas comemorativas e propostas
estapafúrdias, como a penalização da heterofobia e a obrigatoriedade da
plantação de uma árvore a cada criança nascida. "O mais frustrante no
Congresso é a incapacidade de realizar aquilo que você promete na
campanha", diz Fernando Gabeira (PV-RJ), que, depois de quatro mandatos
de deputado federal, abandonou a Câmara para tentar a eleição a
governador do Rio de Janeiro em 2010. "Já os grandes temas de porte
nacional foram levados ao Tribunal de Justiça, como o aborto de
anencéfalos, a união civil e a marcha da maconha".
AS TENTAÇÕES DO PODER
É tudo ladrão? Não. Mas veja como os parlamentares podem usar a política para tirar proveito próprio.
1. O TIRA-GOSTO
Cada parlamentar custa em média R$ 7,4 milhões por ano. Com a verba de
gabinete, é comum contratar funcionários domésticos e retribuir cabos
eleitorais e doadores de campanha. O senador Fernando Collor (PTB-AL),
por exemplo, já chegou a pagar com verba de gabinete o jardineiro da
Casa da Dinda e duas arquivistas do "Centro de Memória Fernando Collor".
Já o "cotão" pode ser indevidamente usado para comprar jornalistas,
pagar material de campanha e contratar empresas-fantasmas.
2. O LANCHINHO
Para continuar na vida política, os caciques regionais precisam manter
seu curral eleitoral. Como? Com as "emendas parlamentares" - o direito
de remanejar R$ 15 milhões do Orçamento Geral da União. Com elas, o
parlamentar constrói creches, compra ambulâncias e fortalece alianças
com prefeitos locais. Se quiser se reeleger ou disputar um cargo
executivo, meio caminho andado. Mas tem mais. Essas emendas podem ir
para entidades-fantasmas, contratos superfaturados, ONGs de amigos...
3. O PRATO COMERCIAL
Políticos podem propor e votar matérias de acordo com os interesses dos
setores que os elegeram. Para isso, eles se organizam em Frentes
Parlamen-tares - grandes bancadas suprapar-tidárias que defendem causas
específicas, como ambiente e porte de armas. Mas há também os interesses
de quem pagou a eleição. E é nesse momento que lobistas e financiadores
de campanha recebem o retorno de seus investimentos. "Fiz um projeto
para proibir embalar bebidas alcoólicas com garrafa PET", diz o deputado
Alfredo Sirkis (PV-RJ). "Mas o projeto foi destroçado nas várias
comissões em função de lobbies."
4. O BANQUETE
Para que um presidente consiga governar, ele precisa de apoio no
Congresso. E o que o Planalto pode oferecer em troca são ministérios. O
PMDB ficou com a Previdência, Minas e Energia e outros três. O PDT, com o
Trabalho. PCdoB, com os Esportes. O PP, de Maluf, com as Cidades. E por
aí vai. Para o governo, isso dói bastante, porque significa comprometer
parte do programa de governo. Mas, se não quiser abrir mão, vai
precisar utilizar mecanismos menos ortodoxos, como mensalidades em troca
de votos. Como no Brasil temos 24 partidos na Câmara, sendo que o maior
tem apenas 17% das cadeiras, há muito o que se negociar.
Chega de tanta burrice
Sim, algo deu errado. O que fazer, então? Sonhar com uma bomba no meio
do Planalto Central, como pedem certas campanhas de Facebook? Derrubar
tudo e começar de novo? Bom, a Rússia fez isso na Revolução de 1917, e a
Alemanha também, em 1933. E, se você se lembrar da aula de História,
nenhuma das duas tentativas terminou bem. Como disse Winston Churchill
ao Parlamento inglês em 1947, "a democracia é a pior forma de governo -
exceto todas as outras". Algumas reformas poderiam melhorar bastante a
dinâmica da nossa democracia - ainda que não resolvam a raiz do
problema. Há quase duas décadas, o Congresso tem prometido isso por meio
de uma reforma política. Na prática, só entregaram duas mudanças: a
emenda da reeleição, obtida sob denúncias de compra de votos, e a Lei da
Ficha Limpa, votada sob a pressão de 1,3 milhão de assinaturas. "Muita
gente fala que o sistema não funciona e que é preciso uma reforma. Mas
essa reforma não é feita justamente porque deputados e senadores
precisam votar nela. Por isso, ela acaba fracassada", diz Gabeira. O
principal ponto dessa reforma política é a mudança do sistema eleitoral -
aquele sistema maluco que transformou as eleições do Legislativo numa
caríssima maratona.
Mas isso seria apenas o primeiro problema a ser resolvido na nossa
política. O segundo, tão importante quanto, é a questão da grana. Como
já vimos, as empresas têm imenso poder no nosso jogo político. Uma
alternativa seria botar o Estado para financiar todo o processo. No
financiamento público, pessoas físicas ou empresas não podem doar para
nenhum candidato - apenas para um fundo público, que também receberia o
dinheiro de impostos. Isso, em parte, já acontece. Em 2012, o horário
eleitoral gratuito custou aos cofres públicos R$ 606 milhões em renúncia
fiscal e R$ 286 milhões do fundo partidário (uma ajuda de custo a que
partidos políticos têm direito). Mas o financiamento público traz alguns
pontos importantes. Quanto será dinheiro suficiente e quanto será
dinheiro demais? Por que um cidadão seria obrigado a dar o dinheiro de
seus impostos para um partido com cujas ideias não concorda?
Foi pensando nessas questões que Lawrence Lessig, professor de direito em Harvard e cofundador do
Creative Commons,
teve uma ideia. Para ele, a grana do fundo público de campanha deveria
virar um "vale-democracia". Digamos que cada eleitor tenha direito a um
vale-democracia fixo de R$ 50, deduzido do imposto de renda. É um
dinheiro que você iria gastar de qualquer jeito, mas que vai para as
eleições, para o candidato da sua preferência. Se você quiser apoiar a
campanha de alguém, é só dividir o vale-democracia entre quantos
candidatos quiser. Se você não quiser fazer isso, o voucher vai direto
ao partido ao qual você é afiliado. E, se você não for afiliado a nenhum
partido, ele vai para financiar a Justiça Eleitoral.
O sistema não impede as doações privadas, desde que haja um limite do
quanto se pode doar. Se você quiser dar uma ajuda extra a alguém, poderá
contribuir com, no máximo, R$ 100 - seja você um estivador, seja você o
Eike Batista. O resultado é que vai se dar bem na campanha quem tiver
capacidade de mobilizar mais microdoadores (as pessoas), e não quem
tiver relações com os grupos econômicos mais interessados em influenciar
os rumos da política. Quem vai decidir isso serão muitos cidadãos - e
não só algumas empresas. Ou seja, o interesse do povo pode entrar na
pauta. Claro que essa ideia também tem seus problemas. Por exemplo, ela
democratizaria apenas a superfície do financiamento eleitoral - o mundo
das doações não-contabilizadas, os famosos caixa 2, seguiria existindo. E
poderia até crescer.
A terceira reforma necessária já começou a valer. É a transparência.
Desde maio de 2012, todos os órgãos públicos e privados que recebem
dinheiro público são obrigados a fornecer quaisquer dados a qualquer
pessoa que pedir - sem que ela precise explicar seus motivos (só não
vale informação pessoal ou sigilosa.) Também precisam publicar na
internet dados como o uso de recursos, editais de licitações, contratos e
tantos outros documentos que revelem o andamento da administração.
Assim, o Brasil colocou em prática o que já prometeu 23 anos antes em
sua Constituição, e se tornou o 90º país a abrir seus dados públicos.
Com uma vantagem - fez isso já numa era de democratização da internet e
redes sociais.
Só que isso por si só não faz revolução. Dados amontoados não significam
muita coisa. Para que eles se transformem em informação, é necessário
que sejam interpretados. Ou seja, só servem para algo quando os seres
humanos entram na jogada. E é nesse ponto que, finalmente, começamos a
encontrar a verdadeira resposta para a embananação da democracia no
Brasil: a participação popular. Corrupção, hegemonia de grupos
econômicos nas decisões políticas, paroquialismo... Todos as burrices
que vimos nas páginas anteriores são apenas reflexos de um único
problema: a falta de participação popular na política.
A REGRA DO JOGO
Reformar o sistema eleitoral ajuda? Talvez. Mas qualquer alternativa tem seus problemas.
LISTA ABERTA
Eleitores votam nos candidatos, não nos partidos.
Prós:
- Qualquer pessoa com base eleitoral tem chance.
- Há grande espaço para minorias.
Contras:
- O excesso de candidaturas aumenta o custo de campanha.
- A campanha se foca no candidato, e partidos perdem importância.
EXEMPLOS: países escandinavos, Brasil.
LISTA FECHADA
Eleitores votam nos partidos, que já têm uma lista de candidatos pré-definida.
Prós:
- O foco da campanha são as ideias, não as personalidades.
- Partidos buscam representar vários grupos sociais.
Contras:
- Os candidatos se distanciam dos eleitores.
- Novas lideranças têm poucas chances.
EXEMPLOS: Portugal, Espanha, África do Sul.
VOTO DISTRITAL
Aqui, os Estados são divididos em distritos eleitorais (muito menores que Estados) e cada um pode eleger um candidato.
Prós:
- Candidato tem mais contato com o eleitor.
- O número de candidatos por distrito é limitado.
Contras:
- Interesses locais se sobrepõem aos nacionais.
- Minorias são enfraquecidas.
EXEMPLOS: EUA, Reino Unido, França.
Um sinal retumbante
Enquanto este texto era escrito, milhares de manifestantes se reuniam a
menos de um quilômetro da redação da SUPER. Foi o 5º, e maior, protesto
organizado pelo Movimento Passe Livre, que conseguiu baixar a tarifa de
ônibus na cidade. Desde 13 de junho, quando a tropa de choque da Polícia
Militar atacou manifestantes que gritavam "sem violência", o movimento
ganhou apoio de pessoas que até então o criticavam pelo vandalismo de
uma minoria. Manifestações se espalharam pelo Brasil e por algumas
cidades europeias e americanas. Em São Paulo, diga-se, a manifestação
contra os R$ 0,20 a mais ganhou como mote a frase ""não são só os R$
0,20".
É que esse tipo de movimento, organizado em redes, sempre ganha vida
própria, sem uma cartilha definida. Os protestos então, acabaram difusos
- basicamente "contra tudo". Mas isso é o de menos. Essas
manifestações, no fundo, foram algo muito maior: um sinal retumbante de
que os cidadãos querem derrubar o muro entre sociedade e política.
Sinais mais silenciosos têm pipocado também, numa velocidade crescente.
Um exemplo surgiu em Maringá, Paraná. Durante os anos 90, mais de R$ 100
milhões foram desviados da prefeitura. Quando a mutreta foi descoberta,
em 2000, a revolta foi enorme. Mas, em vez de ficar reclamando, a
sociedade civil decidiu reagir. Primeiro, lideranças se reuniram e
fundaram a Sociedade Eticamente Responsável (SER), em 2004. No ano
seguinte, o novo prefeito, Silvio Barros (PP), abriu os dados da
prefeitura num portal de transparência na internet. Então, para
escrutinar esses dados, o SER formou em 2006 o Observatório Social de
Maringá. Sua função era basicamente dar treinamento para que qualquer
cidadão sem filiação a partido político monitorasse voluntariamente o
uso de dinheiro público do município. Professores, aposentados,
estudantes, advogados. Não importa. Em vez de perder tempo
compartilhando posts raivosos ou comentando matérias no Facebook, os
voluntários puderam usar sua indignação analisando se editais de
licitação não eram viciados, divulgando-os para o maior número de
empresas possível, fiscalizando os preços, as quantidades e a qualidade
dos produtos e serviços licitados, e acompanhando sua entrega. Deu tão
certo que, em 2009, o Observatório Social de Maringá venceu um concurso
em Inovação Social da ONU para América Latina e Caribe. E a ideia se
espalhou para mais de 60 municípios pelo Brasil.
Teste: Que tipo de político representa você?
Open bar da democracia
Outro exemplo vem da Índia. Na maior democracia do mundo, a corrupção
generalizada impede que dinheiro do governo chegue à também maior
população de miseráveis do mundo. O que a organização MKSS começou a
fazer em 1994 no paupérrimo e semidesértico Estado do Rajastão? Pegou
cópias dos orçamentos dos panchayats (as assembleias de aldeia, base do
sistema político indiano) e começou a lê-los em público para a população
- assim todo mundo podia ver o quanto de dinheiro público deixava de
chegar a eles. Como o governo se recusava a liberar documentos, a MKSS
integrou um movimento por uma lei de acesso à informação - que foi
aprovada para o território indiano em 2005, sete anos antes do Brasil.
Esse tipo de auditoria participativa serve de controle do uso do
dinheiro público. É bastante, mas a população engajada pode ir além, se
quiser. Não só controlar, mas decidir com o que o dinheiro público vai
ser usado. Os primórdios dessa ideia surgiram ainda em 1989 em Porto
Alegre. Era o Orçamento Participativo. Nele, a população ia a
assembleias para definir as prioridades dos gastos do município. Desde
então, a ideia se espalhou pelo mundo. Isso, claro, surgiu numa época em
que pessoas precisavam ir à prefeitura até para pegar uma segunda via
do IPTU.
Hoje, as redes sociais ampliam drasticamente o nível de participação. O
passo mais tímido é botar em votação na internet quais obras
pré-selecionadas devem ser realizadas - caso do Orçamento Participativo
Digital de Belo Horizonte, iniciado em 2007. Mas ferramentas de
crowdsourcing podem levar isso muito mais adiante - e bem mais próximo
de você.
Quer que a prefeitura resolva a tampa de bueiro aberta? A lâmpada
queimada? Revitalize o canto ermo onde você foi assaltado? Ferramentas
como o FixMyStreet, do Reino Unido, e o SeeClickFix, dos EUA, permitem
que qualquer cidadão identifique num mapa problemas nos serviços
públicos. É o crowdmapping (mapa colaborativo). A prefeitura pode então
pegar esses relatos, encaminhá-los para os órgãos certos e, quando
resolvidos, mudar o status do post para "fechado". A curto prazo, o
cidadão ajuda a administração a saber onde agir pontualmente. A longo
prazo, é possível constatar padrões em que os problemas aparecem - e,
uma vez conhecendo o padrão, dá para traçar planos para resolver o
problema antes mesmo que ele aconteça.
Isso abre espaço para o passo seguinte: usar ferramentas de redes
sociais para a democracia direta. Algo parecido com isso aconteceu na
Islândia. Em 2008, a economia do país desabou - e a descrença na
política se tornou tamanha que levou algum engraçadinho a colocar o país
à venda no eBay. Dos escombros, os islandeses decidiram criar uma nova
Constituição - escrita não por políticos profissionais, mas pelo próprio
povo.
Primeiro, reuniram mil cidadãos estatisticamente representativos da diversidade regional e demográfica do país para fazer um
brainstorming sobre
o que o país queria ser (pausa para imaginar as ideias esdrúxulas que
saíram). Então, elegeram 25 cidadãos para redigir um rascunho da
Constituição. As conclusões foram publicadas online para que qualquer
cidadão pudesse comentar o texto - foram 3,6 mil comentários e 370
sugestões. Depois de referendado, o texto acabou aprovado por 2/3 dos
eleitores.
Isso, claro, só é possível porque a Islândia tem um alto nível de
escolaridade, uma pequena população (menos da metade do Acre) e uma
enorme vontade de mudar o país. E, infelizmente, a democracia direta
apenas funciona em casos isolados. Caso contrário, corre-se o risco de
tomar decisões baseadas no calor do momento e contra a vontade de
minorias. "Tenho 328 mil seguidores no Twitter, mas não posso escrever
`digam as leis que vocês querem¿. Cada um desses 328 mil só vai pensar
em si mesmo", diz Cristovam Buarque.
Mas a democracia direta pode também ser usada a favor da democracia
representativa, que pouco mudou desde o século 19. Ferramentas em rede
podem servir de meio de diálogo e pressão contínuo entre a população e
seus representantes. Os primeiros passos já foram dados. Um deles são as
petições online. Neste ano, por exemplo, o Congresso brasileiro recebeu
mais de 1,6 milhão de assinaturas eletrônicas por meio do Avaaz contra a
posse de Renan Calheiros na presidência do Senado. Como o regimento da
Casa não reconhece esse tipo de documento, nada foi feito. Mas a pressão
chegou lá. Se esse tipo de ação continuar a ser ignorado, a
legitimidade desses parlamentares será (ainda mais) deteriorada. Outro
passo é o surgimento em vários países de partidos que fazem
crowdsourcing de suas plataformas políticas - como o Partido Pirata,
presente em 28 países, inclusive com dois assentos no Parlamento Europeu
e mais de 40 em assembleias estaduais da Alemanha.
As ações feitas com as novas ferramentas tecnológicas podem ser
desdenhadas, chamadas de "democracia do sofá". De fato, elas levantam
mais bandeiras contra do que a favor de algo. Também são mais
influenciadas por comoções do que pelo debate racional. Por fim, tendem a
se desmobilizar tão logo o assunto perde o frescor. Mas a tecnologia
traz algo que a velha política não permitia: a troca imediata entre o
poder público e a população. Se corrupção e crise de representatividade
não passam de sintomas de uma doença maior - o distanciamento entre
eleitor e eleito -, as redes sociais podem agir direto na raiz do
problema. Elas levam a política para a vida das pessoas, em vez de
limitar a participação às eleições. E permitem agir em espaços que vão
da rua até o Congresso. E se o sofá não bastar? Então, as redes sociais
podem mostrar o seu lado explosivo: a mobilização para protestar nas
ruas. O mundo árabe descobriu isso. O movimento Occupy Wall Street
descobriu isso. A Turquia descobriu isso. E o Brasil também. Bem-vindo
ao futuro da democracia.
Cinco iniciativas para renovar a democracia - de baixo para cima
GOVERNO ELETRÔNICO
Para que as ferramentas do governo eletrônico saiam do mundo das ideias e
vão para as entranhas do governo, os EUA criaram uma bolsa anual para
programadores trabalharem em prefeituras - o "Code for America". Assim,
as pessoas que mais sabem programar podem ajudar a transformar
prefeituras em órgãos mais transparentes, eficientes e abertos para a
participação de seus cidadãos.
PETIÇÃO ALÉM DA INTERNET
Enquanto o nosso Congresso não faz ideia do que fazer com petições do
"Avaaz", alguns países usam as votações para criar políticas públicas.
No "We the People", da Casa Branca, qualquer cidadão pode abrir uma
petição, que terá uma resposta se receber mais de 100 mil assinaturas.
Na Finlândia, o Parlamento é obrigado a discutir toda petição que reunir
ao menos 50 mil assinaturas.
MAPAS POLÍTICOS
Tudo começou com a eclosão de violência política no Quênia após as
eleições fraudulentas de 2007. Um grupo de blogueiros e desenvolvedores
criaram o Ushahidi, um site no qual pessoas poderiam apontar casos de
violência em um mapa online ou por mensagem de texto. Desde então, a
plataforma de cartografia colabo-rativa foi usada para monitorar casos
de corrupção e eleições em todo mundo.
PLANEJAMENTO TERCEIRIZADO
Oito anos de poder é pouco para organizar políticas de longo prazo, como
o plane-jamento urbano. Por isso, algumas cidades atribuíram esse tipo
de discussões a institutos fora da prefeitura. Neles dialogam três
grupos que normalmente se odeiam - academia, sociedade civil e
iniciativa privada. O primeiro caso no Brasil surgiu em 1973, em
Curitiba, o Insti-tuto de Pesquisa e Planejamento Urbano.
OPINIÃO PÚBLICA - E INFORMADA
Uma das ferramentas mais importantes para criar políticas públicas são
pesquisas de opinião. Mas essas pesquisas podem mostrar mais a
desinformação da sociedade do que sua opinião. Uma alternativa para isso
é o "deliberative polling", modelo desenvolvido por James Fishkin, da
Universidade Stanford. Nele, são selecionadas pessoas que representem
estatisticamente uma população. Elas recebem relatórios equilibrados
sobre um assunto a ser deliberado e, depois, se dividem em pequenos
grupos de discussão, que debate sob a ajuda de um mediador profissional.
Então, são novamente convocadas para emitir sua opinião em relação ao
assunto. A ideia é que isso representaria a opinião de toda a população,
se fosse possível deixá-la tão bem informada quanto esse grupo.
Para saber mais
Os Entraves da Democracia no Brasil
Barry Ames, Editora FGV, 2003
Republic, Lost: How Money Corrupts Congress
Lawrence Lessig, Twelve, 2012
Obtido de:
Por que a nossa política é tão burra