Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro
- A consciência não é de hoje, vem de discussões internas de anos, em que as Organizações Globo concluíram que, à luz da História, o apoio se constituiu um equívoco
RIO - Desde as manifestações
de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é dura, a Globo
apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de
fato, de uma verdade dura.
Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.
Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto.
Leia mais sobre esse assunto em: http://oglobo.globo.com/pais/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604
Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.
Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto.
Não
lamentamos que essa publicação não tenha vindo antes da onda de
manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos deram
ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era
correta e que o reconhecimento do erro, necessário.
Governos e
instituições têm, de alguma forma, que responder ao clamor das
ruas.
De nossa
parte, é o que fazemos agora, reafirmando nosso incondicional e
perene apego aos valores democráticos, ao reproduzir nesta página a
íntegra do texto sobre o tema que está no Memória, a partir de
hoje no ar:
1964
“Diante de
qualquer reportagem ou editorial que lhes desagrade, é frequente que
aqueles que se sintam contrariados lembrem que O GLOBO apoiou
editorialmente o golpe militar de 1964.
A lembrança
é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como refutá-la. É
História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a intervenção
dos militares, ao lado de outros grandes jornais, como “O Estado de
S.Paulo”, “Folha de S. Paulo”, “Jornal do Brasil” e o
“Correio da Manhã”, para citar apenas alguns. Fez o mesmo
parcela importante da população, um apoio expresso em manifestações
e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras capitais.
Naqueles
instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de
um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com
amplo apoio de sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar
uma “república sindical” — e de alguns segmentos das Forças
Armadas.
Na noite de
31 de março de 1964, por sinal, O GLOBO foi invadido por fuzileiros
navais comandados pelo Almirante Cândido Aragão, do “dispositivo
militar” de Jango, como se dizia na época. O jornal não pôde
circular em 1º de abril. Sairia no dia seguinte, 2, quinta-feira,
com o editorial impedido de ser impresso pelo almirante, “A decisão
da Pátria”. Na primeira página, um novo editorial: “Ressurge a
Democracia”.
A divisão
ideológica do mundo na Guerra Fria, entre Leste e Oeste, comunistas
e capitalistas, se reproduzia, em maior ou menor medida, em cada
país. No Brasil, ela era aguçada e aprofundada pela radicalização
de João Goulart, iniciada tão logo conseguiu, em janeiro de 1963,
por meio de plebiscito, revogar o parlamentarismo, a saída negociada
para que ele, vice, pudesse assumir na renúncia do presidente Jânio
Quadros. Obteve, então, os poderes plenos do presidencialismo.
Transferir parcela substancial do poder do Executivo ao Congresso
havia sido condição exigida pelos militares para a posse de Jango,
um dos herdeiros do trabalhismo varguista. Naquele tempo, votava-se
no vice-presidente separadamente. Daí o resultado de uma combinação
ideológica contraditória e fonte permanente de tensões: o
presidente da UDN e o vice do PTB. A renúncia de Jânio acendeu o
rastilho da crise institucional.
A situação
política da época se radicalizou, principalmente quando Jango e os
militares mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e
Justiça para fazer reformas de “base” “na lei ou na marra”.
Os quartéis ficaram intoxicados com a luta política, à esquerda e
à direita. Veio, então, o movimento dos sargentos, liderado por
marinheiros — Cabo Ancelmo à frente —, a hierarquia militar
começou a ser quebrada e o oficialato reagiu.
Naquele
contexto, o golpe, chamado de “Revolução”, termo adotado pelo
GLOBO durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única
alternativa para manter no Brasil uma democracia. Os militares
prometiam uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa
das Forças Armadas para a sua intervenção, ultrapassado o perigo
de um golpe à esquerda, o poder voltaria aos civis. Tanto que, como
prometido, foram mantidas, num primeiro momento, as eleições
presidenciais de 1966.
O desenrolar
da “revolução” é conhecido. Não houve as eleições. Os
militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse
de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo
voto indireto, falecido antes de receber a faixa.
No ano em que
o movimento dos militares completou duas décadas, em 1984, Roberto
Marinho publicou editorial assinado na primeira página. Trata-se de
um documento revelador. Nele, ressaltava a atitude de Geisel, em 13
de outubro de 1978, que extinguiu todos os atos institucionais, o
principal deles o AI5, restabeleceu o habeas corpus e a independência
da magistratura e revogou o Decreto-Lei 477, base das intervenções
do regime no meio universitário.
Destacava
também os avanços econômicos obtidos naqueles vinte anos, mas, ao
justificar sua adesão aos militares em 1964, deixava clara a sua
crença de que a intervenção fora imprescindível para a manutenção
da democracia e, depois, para conter a irrupção da guerrilha
urbana. E, ainda, revelava que a relação de apoio editorial ao
regime, embora duradoura, não fora todo o tempo tranquila. Nas
palavras dele: “Temos permanecido fiéis aos seus objetivos [da
revolução], embora conflitando em várias oportunidades com aqueles
que pretenderam assumir a autoria do processo revolucionário,
esquecendo-se de que os acontecimentos se iniciaram, como reconheceu
o marechal Costa e Silva, ‘por exigência inelutável do povo
brasileiro’. Sem povo, não haveria revolução, mas apenas um
‘pronunciamento’ ou ‘golpe’, com o qual não estaríamos
solidários.”
Não eram
palavras vazias. Em todas as encruzilhadas institucionais por que
passou o país no período em que esteve à frente do jornal, Roberto
Marinho sempre esteve ao lado da legalidade. Cobrou de Getúlio uma
constituinte que institucionalizasse a Revolução de 30, foi contra
o Estado Novo, apoiou com vigor a Constituição de 1946 e defendeu a
posse de Juscelino Kubistchek em 1955, quando esta fora questionada
por setores civis e militares.
Durante a
ditadura de 1964, sempre se posicionou com firmeza contra a
perseguição a jornalistas de esquerda: como é notório, fez
questão de abrigar muitos deles na redação do GLOBO. São muitos e
conhecidos os depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de
acompanhar funcionários de O GLOBO chamados a depor: acompanhava-os
pessoalmente para evitar que desaparecessem. Instado algumas vezes a
dar a lista dos “comunistas” que trabalhavam no jornal, sempre se
negou, de maneira desafiadora.
Ficou famosa
a sua frase ao general Juracy Magalhães, ministro da Justiça do
presidente Castello Branco: “Cuide de seus comunistas, que eu cuido
dos meus”. Nos vinte anos durante os quais a ditadura perdurou, O
GLOBO, nos períodos agudos de crise, mesmo sem retirar o apoio aos
militares, sempre cobrou deles o restabelecimento, no menor prazo
possível, da normalidade democrática.
Contextos
históricos são necessários na análise do posicionamento de
pessoas e instituições, mais ainda em rupturas institucionais. A
História não é apenas uma descrição de fatos, que se sucedem uns
aos outros. Ela é o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe
para seguir com segurança rumo ao futuro: aprende-se com os erros
cometidos e se enriquece ao reconhecê-los.
Os homens e
as instituições que viveram 1964 são, há muito, História, e
devem ser entendidos nessa perspectiva. O GLOBO não tem dúvidas de
que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele
momento a atitude certa, visando ao bem do país.
À luz da
História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje,
explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram
outras decisões editoriais do período que decorreram desse
desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em
risco, ela só pode ser salva por si mesma.”
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