terça-feira, 25 de outubro de 2016

O sistema judiciário no país continua caro e pouco eficiente

3 dados preocupantes sobre a Justiça brasileira

  • Estêvão Bertoni
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    25 Out 2016 (atualizado 25/Out 14h50)

    Relatório que acaba de ser divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça mostra que sistema judiciário no país continua caro e pouco eficiente


    O Conselho Nacional de Justiça publica desde 2004 um relatório com dados sobre o funcionamento do Poder Judiciário no Brasil. O documento Justiça em Números, de 2016, que acaba de ser divulgado pelo órgão, traz pela, primeira vez, informações sobre o tempo dos processos no país e as despesas por grau de jurisdição.
    O relatório indica que a Justiça brasileira permanece cara e pouco eficiente, principalmente se comparada à de outros países. Com base no novo documento do CNJ, o Nexo lista três dados preocupantes sobre o Poder Judiciário do país.

    Altos custos

    A Justiça brasileira gastou, em 2015, R$ 79,2 bilhões, 4,7% a mais do que no ano anterior. O volume é maior do que o PIB (Produto Interno Bruto) de 14 Estados brasileiros.
    Em média, os gastos têm crescido 3,8% ao ano, desde 2011. Só no ano passado, o valor representou 1,3% do PIB do país.
    Segundo o artigo “O Custo da Justiça no Brasil: Uma Análise Comparativa Exploratória”, de Luciano Da Ros, doutor em Ciência Política e pesquisador do Cegov (Centro de Estudos Internacionais de Governo), a despesa do Judiciário brasileiro é “proporcionalmente muito mais elevada que a de outras nações”. O texto, de 2015, dialoga com os temas explorados anualmente pelos relatórios do CNJ.
    Na Espanha, por exemplo, as despesas da Justiça representam em torno de 0,12% do PIB (o dado do estudo é de 2012). Nos EUA, chegam a 0,14% e, na Alemanha, a 0,32%, quase a mesma proporção do que na Venezuela, com 0,34% do PIB.
    Por habitante, o custo da Justiça no Brasil é de R$ 387,56, e a tendência é de crescimento, segundo o CNJ. Esse valor foi de R$ 295,73 em 2009.
    “O orçamento destinado ao Poder Judiciário brasileiro é muito provavelmente o mais alto por habitante dentre todos países federais do hemisfério ocidental. Tal despesa é, com efeito, diversas vezes superior à de outros países em diferentes níveis de desenvolvimento, seja em valores proporcionais à renda média, seja em valores absolutos per capita”, escreve Da Ros, em seu artigo.
    Na Suécia, por exemplo, o gasto per capita é de 66,7 euros (ou R$ 227,26, na cotação desta segunda, 24). Na Espanha, gira em torno de 27 euros (ou R$ 91,99), de acordo com o pesquisador.
    No Brasil, cerca de 56% dos gastos totais do Judiciário estão atrelados à Justiça estadual, onde 80% dos processos tramitam. O setor que mais consome as verbas da Justiça é o de recursos humanos (remuneração de magistrados, servidores, inativos, auxílios e assistências), responsável por 89% da despesa total.
    Em seu trabalho, Da Ros diz que as “despesas do sistema de Justiça brasileira encontram paralelo somente na carga processual existente”. O pesquisador classifica, no artigo, a carga de trabalho do Poder Judiciário no Brasil de “impressionante”, o que se encaixa com os resultados apresentados pelo CNJ.

    Acúmulo de processos

    Em 2015, o número de novos processos que chegaram à Justiça teve, pela primeira vez desde 2009, uma redução. Foram 5,5% menos processos do que no ano anterior. Mas isso não significa um alívio para o sistema judiciário brasileiro.
    No ano passado, 74 milhões de processos tramitaram na Justiça do país. Em relação ao ano anterior, houve um aumento de 1,9 milhão no estoque de processos, o que representa um aumento de 3%.
    O crescimento acumulado de 2009 a 2015, de acordo com o levantamento do CNJ, foi de 19,4%. Isso significa 9,6 milhões a mais de processos durante o período.
    “Dessa forma, mesmo que o Poder Judiciário fosse paralisado sem ingresso de novas demandas, com a atual produtividade de magistrados e servidores, seriam necessários aproximadamente três anos de trabalho para zerar o estoque”, conclui um trecho do relatório.

    Demora para sair as sentenças

    Um juiz brasileiro demora atualmente um ano e seis meses, em média, para chegar a uma sentença de primeira instância. Se considerada só a Justiça estadual, esse tempo pula para quase dois anos. A Justiça mais célere, atualmente, é a do Trabalho, que precisa de pouco mais de seis meses, em média, para conceder uma decisão de primeiro grau.
    O tempo de execução, momento em que o direito reconhecido na sentença se concretiza, é mais extenso. Demora-se cerca de quatro anos e dois meses para que isso ocorra.
    Em muitos países europeus, como Dinamarca, Áustria e Hungria, o tempo para que a Justiça chegue à primeira decisão não alcança os cem dias, segundo levantamento de 2016 feito pela Comissão Europeia. Na França e na Itália, o procedimento beira os 300 dias.

    Possíveis soluções

    Para tentar otimizar os gastos da Justiça, diminuir o número de processos acumulados e acelerar o tempo de julgamento em primeira instância, o CNJ propôs nos últimos anos a adoção de algumas medidas. Duas resoluções já foram baixadas:
    • Resolução 195/2014 -  A distribuição do orçamento dos órgãos do Poder Judiciário de primeiro e segundo graus devem ser proporcionais à demanda e ao acervo processual.
    • Resolução 219/2016 - A distribuição de servidores, de cargos em comissão e de funções de confiança nos órgãos de primeiro e segundo graus devem ser proporcionais à demanda.
    O CNJ é um órgão de controle externo que foi instalado no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Sua criação incomodou, à época, alguns magistrados estaduais, acostumados a gerir os tribunais sem interferência. O impasse só foi resolvido no começo de 2016, quando o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Ricardo Lewandowski, que presidia o CNJ, criou um conselho consultivo interno, formado pelos presidentes dos tribunais nos Estados, o que deu aos desembargadores maior participação.
    Além das resoluções do CNJ, outras iniciativas têm sido tomadas para desafogar a Justiça brasileira. O Novo Código de Processo Civil, que passou a vigorar em março de 2016, também estabeleceu novas regras e procedimentos para tentar agilizar e simplificar as resoluções de conflitos, como as audiências de conciliação e a mediação em casos de família.

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    quinta-feira, 13 de outubro de 2016

    Entrevista com José Beltrame - um análise da violência do Rio de Janeiro


    Em entrevista exclusiva, secretário de Segurança do Rio, afirma que o estado perdeu o combate ao tráfico e que apoia a descriminalização



    O secretário de Segurança do estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, é a única autoridade brasileira de alto escalão, hoje, a apoiar a proposta de o país descriminalizar a posse e o consumo de drogas.
    "O combate às drogas não está funcionando", diz Beltrame. "Meu posicionamento reflete o que vi em Portugal em junho. Eles descriminaram o uso da maconha. Depois passaram para as drogas consideradas mais pesadas. Tiraram o problema da polícia e levaram para o Ministério da Saúde. Mas se estruturaram antes. Criaram clínicas de reabilitação. Não ficou uma discussão político-ideológica sobre liberar ou não, descriminar ou não", fala.
    Beltrame acredita que a grande questão nacional hoje é a perspectiva a ser dada para jovens em situação vulnerável. "Um país onde 52 mil pessoas morrem por crime violento é, me desculpem, estado de barbárie. Mas é só falta de polícia? Não é", fala, dialogando com o que disse o cineasta José Padilha em entrevista à Trip em junho. Beltrame é cáustico ao constatar: "A sociedade quer a favela para ter cozinheira, faxineira e lavadeira. Enquanto olharem a favela como gueto, as coisas serão difíceis. Não ponham mais a culpa na segurança pública".
    Pacificação?
    Aos 58 anos, José Mariano Benincá Beltrame, gaúcho de Santa Maria, torcedor do Internacional, está no segundo casamento. Vive há dez anos com a educadora e ativista social Rita Paes. Tem três filhos. É formado em direito, em administração pública e de empresas, com cursos em universidades federais gaúchas. Especializou-se em inteligência estratégica na Escola Superior de Guerra. Ingressou no quadro policial em 1981 como agente da polícia federal. A vocação policial, conta, foi despertada por um personagem, o detetive Jimmy "Popeye" Doyle, interpretado por Gene Hackman em Operação França (1971).
    "Descobri a aura que cerca esse tipo de agente, uma idealização em torno de sua coragem e do alto grau de eficiência", conta. Fez carreira no setor de inteligência, chegando ao comando da seção na instituição. Quando chefiou no Rio a chamada Missão Suporte, grupo de elite de investigação, morou por dois anos numa sala do horrendo prédio que sedia a PF na praça Mauá. De lá liderou a prisão de mais de uma centena de policiais, empresários e políticos corruptos.
    Em 2007, assumiu a Secretaria de Segurança do Rio. Foi escolhido pelo governador Sérgio Cabral (PMDB) a partir da indicação do então ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, e do secretário nacional de Segurança, Luiz Fernando Corrêa, que conhecera Beltrame na PF. Até sua posse, o estado do Rio convivia com a média de um secretário novo a cada ano.
    O começo da gestão Beltrame espantou as entidades de direitos humanos. Em junho de 2007, ordenou a realização de uma megaoperação no complexo de favelas do Alemão. Enviou mais de 1.500 homens para uma região em que a polícia não entrava havia quatro anos. O resultado foram 21 mortos em confronto policial, de acordo com a versão oficial. Mas muitos deles traziam características de execução, com balas nas costas e na cabeça, a curta distância. A ação sangrenta tornou-se o símbolo da política do confronto. Houve condenação nacional e internacional à atuação da polícia. O Rio tinha à época 41 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, uma taxa três vezes maior do que o máximo considerado aceitável pela Organização Mundial da Saúde.Em 2008, a política de segurança do Rio mudou. Beltrame criou a primeira Unidade de Polícia Pacificadora, no morro Dona Marta, em Botafogo, zona sul da cidade. Depois de sete anos de existência das UPPs, a taxa de homicídio no estado do Rio chegou a 25 por cada grupo de 100 mil habitantes, a menor da história. As UPPs garantem a segurança numa área de 9,5 milhões de metros quadrados, equivalente a quase 50 Maracanãs. São 38 UPPs que servem a 200 comunidades, com 10 mil policiais em áreas habitadas por 1,5 milhão de pessoas. A comunidade Santa Marta, erguida nas encostas do morro Dona Marta, ficou por sete anos sem homicídios e tiroteios. A paz foi rompida em maio deste ano, com a volta de disparos entre quadrilhas de traficantes. Era o alerta que faltava para o aumento dos questionamentos à eficácia das UPPs.
    Padilha e sequestro
    Uma série de crimes ampliou a sensação de insegurança no estado neste ano. Parecia que começava a ruir o projeto de Beltrame. Os dados oficiais, no entanto, mostram que este deve ser o ano com menor número de homicídios, de menor número de mortes em confronto policial e de menor número de pessoas desaparecidas – rubrica cujo crescimento poderia explicar a queda no número oficial de assassinatos. Por outro lado, os roubos a pedestres continuam a aumentar, dando argumento a quem se sente desprotegido no Rio.
    Caso do cineasta José Padilha, que, em entrevista recente à Trip, revelou que se mudou da cidade após um grupo armado ter tentado invadir sua produtora no Jardim Botânico, bairro nobre da zona sul. Padilha havia acabado de lançar Tropa de elite 2, retrato da milícia e do crime entranhado no estado do Rio. "Como ele não fez registro policial, não tive conhecimento dessa tentativa. Se efetivamente existiu, é grave. Mas precisamos consubstanciar isso. Preferencialmente, com ele sendo ouvido. Se ele quiser vir aqui, podemos ouvi-lo em separado, para garantir o sigilo. Poderia ser até uma tentativa de roubo de equipamentos, porque há quem faça esse tipo de crime encomendado", afirmou Beltrame. O secretário determinou que a polícia civil instaurasse inquérito para apuração da ameaça a Padilha, depois de sua entrevista à Trip.Recordista como sobrevivente no cargo de secretário, que ocupa há quase nove anos, Beltrame se disse fisicamente cansado, sem férias, mas ainda estimulado para a função. Decorou sua sala com um relógio cuco italiano, herança de um bisavô. A cada meia hora toca o carrilhão. O tempo passa inclemente à sua frente. Sofre com dores nas costas, que o impedem de correr, seu exercício predileto. Revestiu a cadeira de trabalho com o assento Dr. Coluna, apetrecho indicado para quem necessita distensionar a coluna vertebral. De seu gabinete, com janelões de vidro voltados para a Central do Brasil e o Morro da Providência, vislumbra o caos urbano da cidade que escolheu para viver.

    A polícia do Rio prende 26 mil pessoas por ano, a Justiça solta 22 mil no mesmo período – de acordo com o censo penitenciário, o Rio tem 35,6 mil presos para 29 mil vagas. A polícia prende demais ou a Justiça libera em excesso?

    Isso mostra que tem algo errado no processo. O problema não é soltar as pessoas. Se a Justiça soltou foi porque a lei permitiu. O problema é a reincidência do crime, o que obriga a polícia a trabalhar duas, três, quatro vezes para prender o mesmo criminoso. Tivemos um homicídio no Rio em julho, no qual o assassino estava em prisão domiciliar, mas cometeu o crime na rua. Quem fiscaliza isso? Existe uma série de opções jurídicas para que essa pessoa estivesse em liberdade. Não sou contra. Mas vejo que não há um órgão fiscalizador sobre a pessoa que está pagando seu débito com a sociedade. Quem acaba fiscalizando é a polícia quando ele comete um novo crime. Temos leis eficientes no Brasil. Se a lei diz que a condenação é de dois anos, o condenado deveria cumprir os dois anos de reclusão. Quando um juiz dá sua sentença, deveria levar em consideração o efeito de sua decisão na sociedade.

    Pode explicar melhor?

    Tenho um exemplo claro que é o caso do Claudinho [Cláudio José de Souza Fontarigo] e do Fu [Ricardo Chaves de Castro Lima], do Morro da Mineira, no Rio. São líderes do tráfico no complexo de favelas do São Carlos, que foi ocupado pela polícia. Eles têm mais de 40 anos e condenações de prisão que, somadas, passam de 50 anos. Estavam em presídio federal, fora do Rio. Eles têm o controle do tráfico de drogas no centro do Rio. Com uma pena dessa dimensão, os dois conseguiram liberação da cadeia por sete dias para visitar as famílias. E fugiram. Se eu tenho 40 anos de idade, 50 anos de pena e me dão essa oportunidade, nem eu voltaria para a cadeia. Voltaram ao Rio e causaram uma verdadeira barbaridade. [Fu e Claudinho são acusados pela polícia de iniciar conflito entre facções criminosas rivais que deixou dez mortos nos Morros da Coroa, Mineira e São Carlos.] O que precisa ser feito é uma análise criteriosa. Na medida em que se dá o benefício, que é um direito, é preciso haver fiscalização sobre os beneficiados.

    O que o senhor propõe é o endurecimento das leis que regulam os presos?

     Não se trata de endurecimento. Se alguém cometeu crime que tem pena de três anos, de dez anos, que cumpra o período determinado. Tráfico pode dar condenação de oito a 12 anos. Se o cara pega oito anos, cumpre um terço, no máximo dois terços, e sai. Ótimo. Mas quem vai controlar essa pessoa? Como isso acontece? Quem me diz que essa pessoa está em condições de voltar ao convívio social? Não precisamos de mais penas e leis. O que precisamos é que elas sejam cumpridas. Num país desenvolvido, dois anos de cadeia são dois anos de cadeia. No Brasil, se a pena é de oito anos, o preso pode ser libertado tendo cumprido um ano e meio de cadeia. Temos leis, sem dúvida nenhuma, modernas, baseadas no que diz a Constituição, que assegura os direitos individuais. Mas são leis suecas, em uma sociedade que não é sueca.

    Os censos penitenciários mostram que os presos brasileiros são, em sua maior parte, pobres, pretos e sem estudo. Não se prende demais ou errado?

     Os crimes de menor potencial ofensivo são reconhecidos pelos juízes. A polícia leva ao juiz, numa prisão em flagrante, por exemplo. Mas é o juiz quem diz: solta ou não solta. A polícia apresenta ao Judiciário a materialidade, as provas do crime. A determinação da pena é tarefa do Judiciário.

    O senhor mudou de posição a respeito do encarceramento de usuários de drogas. É a favor agora da liberalização do consumo de drogas. Por quê?

    Meu posicionamento reflete o que vi em Portugal em junho [Portugal tornou-se modelo mundial em prevenção à droga ao aprovar lei em 2000 que descriminaliza a posse e o consumo de qualquer droga: consumir droga continua a ser proibido, mas fica fora de enquadramento criminal]. Fui para ver isso. Eles descriminaram o uso da maconha. Depois passaram para as drogas consideradas mais pesadas. Primeiro, tiraram o problema da polícia e levaram para o Ministério da Saúde; mas estruturaram-se antes de dar esse passo. Criaram clínicas de reabilitação, com assistentes sociais, psicólogos, advogados, representantes da sociedade. Não ficou uma discussão político-ideológica sobre liberar ou não, descriminar ou não. Quer liberar? Ótimo. Mas o que vamos fazer depois? Em Portugal, eles têm 90 clínicas de reabilitação, número que talvez seja insuficiente até para o Rio de Janeiro. A descriminação foi o último degrau da escada. Sou totalmente a favor de algo dessa natureza, e acho que o Brasil não escapa dessa discussão.

    O combate ao tráfico, hoje, está funcionando?

    Não. Trabalhei muitos anos na fronteira. O combate não está dando resultados. Poderíamos canalizar os esforços nos crimes transnacionais, responsáveis pela grande quantidade de droga. Hoje as polícias não têm estrutura para combater os fornecedores, seja nas fronteiras dos seus estados, seja nas fronteiras com os países vizinhos produtores. Se nos organizássemos para o combate efetivo, o PM dentro de uma favela seria responsável pelo policiamento de proximidade, sem necessitar se preocupar com usuário de droga. Porque hoje, se o PM não faz o combate ao usuário, dizem que ele recebe arrego, propina do tráfico. Com uma nova estrutura, a questão do consumidor passaria a ser do Ministério da Saúde.

    O senhor teme uma explosão de consumo?

    Amsterdã liberou áreas para consumo de drogas e depois recuou, porque aumentou o consumo. Amsterdã não usou a estratégia da recuperação, pelo que sei. Criou territórios de consumo. Vou mais longe. Falei com colegas que estiveram como observadores no Canadá. Toronto também colocou áreas para as pessoas consumirem drogas. Sem sucesso. [Em fevereiro, o jornal canadense The Globe and Mail publicou longa reportagem para mostrar que o país perdeu a vanguarda da política contra as drogas para Portugal.] O que temos de fazer é dar a possibilidade de as pessoas se recuperarem. Vamos liberar? Vamos, mas nós, como Estado, temos de dar ao usuário a possibilidade de se recuperar.O senhor defendeu essa ideia para o governador do Rio? Recebeu apoio? Ele apoia, mas esse tem de ser um movimento da nação brasileira. Assim como foi em Portugal. Lá eles já estão partindo para cuidar das pessoas viciadas em jogo! Tem muito aposentado jogando dinheiro fora em roleta. Lá estabeleceram uma política que é transparente, objetiva, mensurável. Eles gastam recursos razoáveis. Dão um auxílio que pode chegar a 400 euros para cada usuário em tratamento. Essa deveria ser uma questão nacional.

    O senhor já fumou maconha?

    Não. Mas já tive muitos amigos que consumiam.

    Se um filho seu experimentasse alguma droga, como enfrentaria a questão?

    Enfrentaria conversando como sempre fiz. O diálogo é fundamental.
    O senhor é um pai severo?

    A amizade entre pai e filho sempre é o melhor caminho. Eu tento passar senso de responsabilidade para os meus filhos. Acho que é o grande segredo. Não vou dizer aqui como um pai deve educar seu filho. Cada qual aja como julgar melhor. Acho que tento passar para os filhos senso de responsabilidade.

    Como foi a sua criação? Que lembrança guarda da infância?

    Minha infância no Sul foi boa. Em casas antigas, com quintais grandes, espaçosas. Era muita correria, subindo em árvore, comendo fruta. Tomando banho de açude ou riacho, pescando, andando quilômetros a pé para jogar futebol. Ia e voltava do colégio a pé. Tinha que caminhar 10 quilômetros por dia. Na área rural, meus avós e meu pai tinham uma pequena propriedade. Lá não íamos para brincar, e sim para ajudá-los. Carregava sacos de laranja de 40 quilos, melancias nas costas. Tenho saudade de tudo isso. Mas o mundo cresceu e isso ficou para trás.

    Que lembranças tem dos seus pais? É católico por causa deles?

    Isso é coisa de italiano. Sou italiano por parte de pai, mãe e avós. O italiano é muito apegado à religião católica. Não tinha como escapar disso. Desde pequenino, tinha de ir à missa, depois da missa tinha o almoço, com mesa grande e a família toda. Fiz catecismo, primeira comunhão, ajudei a celebrar missa em Santa Maria. Eu era o terceiro de quatro filhos. Meu pai trabalhou na roça e na ferraria do avô até arrumar um emprego no Banco do Brasil.Na juventude, o senhor morou em uma pensão em Bagé, quando começou a faculdade. Gostava de farra ou era mais comportado? Acho que sempre fui comportado. Mas nunca fui um cara fechadão. Sempre consegui me relacionar bem com todo mundo.

    O senhor já fez análise, ioga, alguma terapia?

    Não. O que faço agora é fisioterapia, por causa da coluna [risos].

    A discussão atual de segurança se limita à maioridade penal, a reduzir a idade em que um jovem pode ser responsabilizado criminalmente. O senhor já se disse favorável à redução da maioridade. Não é uma posição em choque com a pregação em defesa da descriminação das drogas?

    São coisas totalmente diferentes. A melhor opção para mim em relação à maioridade penal não é a idade. O foco da discussão deveria ser outro. Uma pessoa com 15 ou 40 anos que cometeu um crime tem de ir para um lugar onde se recupere. Não estamos vendo essa discussão. Ficamos só no aumenta ou diminui a idade penal. O número de menores que reincidem na prática delituosa mostra que estamos fora do foco. Aquele menor que esfaqueou o médico na Lagoa Rodrigo de Freitas havia cometido 15 delitos antes. Faltou policiamento na Lagoa? Lógico que faltou, se mataram uma pessoa ali. Ali e em qualquer lugar da cidade que tenha havido uma pessoa morta faltou policiamento. Eu me pergunto: e as 15 outras vezes que prendemos esse menor? O que fizeram com ele? Temos de ver onde essas pessoas devem ficar, como evitar a reincidência. Só acho que, na rua, o infrator não pode ficar. Na discussão hoje, prefiro reduzir para os 16 anos, mas não é a melhor solução. Sem dúvida nenhuma.
    As ideias de maior repressão às drogas e de endurecimento das leis penais parecem hoje majoritárias na sociedade. Esse espírito me parece contraditório com a ideia de descriminação e de tratamento de usuários. Claro. A sociedade age assim porque o tecido social para suportar certas coisas se rompeu. A sociedade não aguenta mais. É a demonstração da falta de crença nas instituições, entre elas a polícia, o Judiciário, os responsáveis pela assistência social. Elas querem endurecer porque não aguentam mais. Fui muito cobrado quando ocupamos o Complexo do Alemão e os traficantes foram filmados fugindo pela Serra da Misericórdia. Diziam: "Por que o senhor não mandou os helicópteros e tomou uma providência contra aquela fuga?".
    Seria uma chacina. Mas não é essa a nossa função. É pacificar. As pessoas não aguentam mais. Tem de haver uma política que tenha começo, meio e fim. Não se trata só de encarceramento ou não encarceramento. O que se faz hoje contra a violência urbana? Segurança pública hoje é sinônimo de polícia. Isso é um erro grave.A polícia é parte do problema? Sim. Temos de criticar a polícia, falar de suas falhas. Mas temos de perguntar: o que estão oferecendo para o jovem em situação vulnerável? O Estado perdeu a capacidade de trazer o jovem para si. Um país onde 52 mil pessoas morrem por crime violento é, me desculpem, estado de barbárie. Mas é só falta de polícia? Não é. Posso estar sendo interpretado assim: o Beltrame quer fugir da sua responsabilidade. Mas mostramos resultados no Rio. Em junho, tivemos o menor número de homicídios da história para um único mês. [O índice de 272 homicídios foi o menor dos últimos 24 anos, quando foi iniciado o controle.] A polícia está enxugando gelo por uma série de problemas: recursos penais, decisões judiciais etc. A polícia não tem capilaridade para tudo. Mas tem de ser olhado o que é feito de assistência social e prevenção. Que perspectiva se dá para um jovem? Vão dizer: a secretaria tal, o ministério tal colocou R$ 40 milhões. Mas tem de dizer onde isso foi gasto, qual o custo-benefício.

    Quando o senhor assumiu o cargo de secretário de Segurança, o índice de homicídios era de 41 para cada grupo de 100 mil pessoas. Hoje são 26 para cada 100 mil, redução de quase 40%. Com o número deste mês, deve chegar a 25 por 100 mil.
    Mas a Organização Mundial da Saúde afirma que a taxa aceitável é de, no máximo, dez homicídios para cada 100 mil pessoas. O senhor tem a perspectiva de chegar a esse número aceitável?

    Não. Precisamos não só melhorar a polícia, mas também retirar o jovem da situação de risco. O que a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) fez no Rio foi desafiar a ideia de que segurança é um caso só de polícia. Não entramos nas favelas para pegar droga. Entramos para permitir que outras ações do Estado aconteçam. A UPP é uma janela para alguém fazer mais coisas, seja de que nível for. A sociedade ainda tem um olhar marginal para a favela. O Estado brasileiro não tem uma agenda para a favela. A preferência nossa foi ir a regiões em que as pessoas eram segregadas havia 40 anos. Tem de haver uma agenda concreta. Isso eu não vejo acontecer. A sociedade quer a favela para ter cozinheira, faxineira e lavadeira. Enquanto olharem a favela como gueto, as coisas serão difíceis. Quem abandonou as pessoas lá e só se lembra delas em tempo de campanha eleitoral não foi a segurança pública.

    Pelos números, o Rio deveria comemorar a redução da criminalidade. Mas o sentimento majoritário hoje é de degradação da política de segurança. O projeto das UPPs acabou?

    A UPP não acabou, não vai acabar. Desculpe a pretensão, mas é um grande projeto. A única coisa boa que aconteceu nesses lugares nos últimos 40 anos. A UPP é hoje projeto reconhecido pelas Nações Unidas. Diminuiu em 72% os homicídios dentro dessas áreas. Diminuiu em 82% a letalidade violenta, que é o policial que mata e chuta porta. Diminuiu a incidência de pessoas baleadas em hospitais. Diminuiu a evasão escolar nas áreas atendidas. A UPP tem problemas nos grandes complexos. No Alemão, onde moram 140 mil pessoas, na Rocinha, que tem 110 mil. Temos lugares, como Tijuca, Cidade de Deus, Babilônia, Jardim Batan, que vão muito bem. Os índices de criminalidade na cidade do Rio estão despencando há seis meses, desde janeiro. Mas aconteceram aqui episódios com repercussão imensa. Tivemos o incidente na Lagoa que foi péssimo para todos, em especial para aquela família. Tivemos a morte na estação do metrô da Uruguaiana, tivemos o nosso bispo assaltado. As pessoas se sentem agredidas. O sentimento de insegurança se eleva. Mas os índices estão melhores do que os do ano passado e talvez do que os de anos anteriores.

    E os PMs filmados por câmeras do próprio carro matando jovens; a elite da tropa de elite do Rio, o Bope, acusada de corrupção e investigada por ter participado da ocultação de cadáver do Amarildo, cujo assassinato na Rocinha virou um símbolo dessa fase de degradação?

    Mas não podemos pegar três questões e julgar a qualidade da segurança pública que tem de cobrir 16 milhões de pessoas. Estamos fazendo as investigações em sigilo e vamos cortar na carne. Sempre tinha aquela história de corporativismo. Não tem nada disso mais. Mas temos de preservar o Bope. O Batalhão de Operações Policiais Especiais é considerado uma das melhores tropas especiais do mundo. Vamos tirar essas peças, como já tiramos. O caso Amarildo é muito triste. Num lugar emblemático, onde se havia feito todo aquele esforço de pacificação. Aconteceu, mas colocar o projeto UPP em xeque? O projeto atende 1,5 milhão de pessoas, com 10 mil policiais em 200 comunidades. Não se pode jogar fora tudo isso. Agora, as pessoas têm razão nesse sentimento. Mas temos de agir com clareza, transparência, apresentar os culpados. Temos de falar de UPP policial, mas temos também de falar de UPP cidadã. De UPP de prevenção, que dê perspectiva, que diga que o mundo não termina no muro da favela. Se deixar isso só e exclusivamente na mão da polícia, as coisas vão ficar difíceis.

    O senhor teve uma irmã assassinada pelo ex-marido, que depois se suicidou. Ocorreu em 2002 em Santa Maria. Ela sofria violência doméstica, conseguiu mandado judicial para que o ex-marido não se aproximasse e ainda assim foi assassinada. À luz dessa experiência pessoal, a questão de gênero merece atenção especial na segurança pública?

    Sem dúvida nenhuma. Minha irmã e nós todos fomos vítimas desse tipo de crime. Testemunhamos o quanto a mulher sofre e sofria e tem medo de reagir, de tomar uma atitude que a liberte, sob pena de entregar a própria vida. Ficou com medo de ir para minha casa, de ir para a casa das minhas irmãs. Com medo. No dia que ela resolveu, aconteceu isso. Hoje acontecendo, não só a Lei Maria da Penha como a delegacia da Mulher conduziriam imediatamente esse homem que a ameaçava. Mas aí era uma paranoia. Tem de ver o que tem de patológico nisso. A Justiça não é para patologia, não é para louco. Tem de ver que esse cara estava fora de si, tinha de ser analisado. A medida restritiva contra o marido da minha irmã tinha oito meses. Parecia uma coisa tranquila. Tem de se cuidar e investir nisso, porque infelizmente a mulher ainda sofre esse tipo de agressão.

    Como recebeu a notícia do assassinato da sua irmã?

    Eu era agente ainda da polícia federal em Santa Maria, onde morávamos. Estava na delegacia, quando aconteceu a tragédia. O telefone tocou e me disseram que havia ocorrido algo grave. Saí correndo para a casa da minha irmã. Até hoje não me lembro nem sequer o percurso que fiz de tão aflito. Larguei o carro na rua, aberto. Subi ao apartamento e lembro de ver minha mãe sentada na mesa de jantar, desolada. Era possível ainda sentir o cheiro de pólvora. Corri para o banheiro e vi os dois corpos no chão. A partir dali começou aquela coisa macabra de chamar perícia, polícia civil, Instituto Médico Legal, funerária. Eles deixaram dois filhos, na época com 5 e 7 anos. Foram criados por minha mãe. Quando ela morreu, foram morar com meu irmão, que é médico no interior do Rio Grande do Sul.

    O senhor segue crítico do que chama de cultura da desorganização no Rio?

    A sociedade se fechou. Talvez não tenha sabido optar por pessoas que fizessem políticas contrárias ao que temos aí. Comprou carro blindado e deixou que as coisas acontecessem. Não consigo entender como chegamos a esse ponto. Não é possível a pessoa morar no metro quadrado mais caro do país e ficar ali tomando uísque vendo o Vidigal crescer e não tomar atitude.

    Em termos de segurança, a Olimpíada preocupa mais do que a Copa?

    Olimpíada é muito mais difícil do que Copa do Mundo. São mais de 180 países concentrados na cidade. Mais de 200 eventos diários, mas tenho tranquilidade de dizer que vamos fazer grandes Jogos Olímpicos.

    Teme confrontos na rua como ocorreu na Copa?

    Estamos preparados. A polícia e a sociedade aprenderam muito. O Brasil não estava preparado para um movimento daquela dimensão naquele momento. Acabou sendo difuso, sem liderança. Sem pessoas com quem sentar e conversar. Todos nós aprendemos. Se houver manifestação, não há problema. O que não pode é transcender certos atos. Não vai ser com violência que vai se moldar a maneira de os governos agirem.
    A polícia também agiu com violência. Não tenha dúvida. Temos policiais punidos por isso. Mas é uma situação difícil para o policial. Ele fica entre o abuso do poder e a prevaricação. Naquele momento é preciso ter frieza e preparo grandes. O agir e o não agir. É preciso ser dito que a sociedade não gosta muito da polícia. A polícia se afastou da sociedade, a sociedade se afastou da polícia. Isso desde os anos 60. A polícia entrava nas casas, batia, cometia excessos. Sem dúvida, houve separação. Juntar é algo difícil.

    O que gosta de fazer no Rio?

    Vou à Lapa, ao Maracanã, à missa de domingo da PUC por causa do coral, vou à feira de São Cristóvão, vou a pé à praia, em Ipanema, a três quarteirões do meu apartamento. Volta e meia levo uma paleta de cordeiro para assar no Chico e Alaíde, no Leblon, bar perto de casa.

    Sobre as facções, o senhor disse que no Rio não há um senhor das drogas, um senhor das armas. Qual a razão de as lideranças serem fragmentadas?

    Nossa sorte é que o crime aqui não é organizado como é o PCC em São Paulo. Lá eles não fazem questão de ostentar poder, armas, não dão tiro para cima. Mas, quando alguma coisa não dá certo, eles vão lá e matam policiais. No Rio, temos três facções criminosas, que são oriundas da Falange Vermelha. De brigas internas da Falange nasceram essas três facções, que se odeiam. Uma vive brigando pelo controle dos pontos de droga da outra. Está aí a ADA (Amigo dos Amigos) brigando com o Comando Vermelho, que está enfraquecido, porque quer tomar os pontos de venda de droga deles.
    Líderes do Comando Vermelho dizem que só há UPPs na área em que eles vendem droga, o que beneficiaria as facções concorrentes. Isso é óbvio. Eles eram 80% do mercado da droga. Sobravam 15% para a ADA e 5% para o TCP [Terceiro Comando Puro]. Não escolhemos ir para cima do Comando Vermelho. Fizemos uma parábola da zona sul à zona norte, ou da zona norte à zona sul [para demarcar as áreas que receberiam UPPs]. Nesse caminho estava o Comando.

    O senhor contabiliza dezenas de ameaças de morte. Em que grau se preocupa com elas?

    Não me preocupo. Desde que sou policial, duvido que haja uma pessoa que prendi, mandei prender ou investiguei que eu tenha, desculpe a expressão, feito uma sacanagem. Não bati em ninguém, não matei covardemente ninguém. Com a experiência de polícia, digo uma coisa: o bandido vai para cima de um policial ou de outra pessoa porque bateram no rosto dele, roubaram-no ou porque fizeram sacanagem com ele. Porque quem recebe essas coisas não esquece. Você bateu no rosto de alguém 20 anos atrás, mas não se lembra. Mas pode ter certeza de que o cara que apanhou não se esqueceu da sua cara. Não quero dizer que amanhã eu não possa aparecer com a boca cheia de formiga. Mas duvido que alguém diga que eu tenha sacaneado alguém. Fui a muita audiência no Judiciário, prendi muita gente, apreendi toneladas e toneladas de droga, mas nunca sacaneei ninguém.

    No seu discurso, parece que está deixando a polícia para assumir a política.

    Negativo. Não vou ser político, não quero. Enquanto eu achar que sou útil aqui e não me tirarem, pretendo ficar. Para desenvolver o meu trabalho tenho de ter consciência crítica a respeito das coisas. Somos criticados e temos de ser. A sociedade paga e tem de ter retorno. Mas não podemos ser os únicos criticados. Segurança pública é um jogo que nunca vamos ganhar. Nunca vou estar satisfeito, feliz da vida. A redução dos homicídios me estimula, mas o jogo nunca vai ser ganho. Existem variáveis que você não controla.

    O senhor está cansado de exercer essa função?

    Estou cansado. Não tenha dúvida. São oito anos e meio. Acredito que dá para melhorar. Mas vou sair daqui e não vou arrumar isso. Nosso problema veio com dom João. Serão gerações e gerações para arrumar.

    Fonte: http://revistatrip.uol.com.br/trip/jose-beltrame-fala-de-trafico-seguranca-e-descriminacao-de-drogas

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    quarta-feira, 12 de outubro de 2016

    Elio Gaspari: Para que a PEC 241 seja eficaz, precisa morder para cima

    Elio Gaspari: Para que a PEC 241 seja eficaz, precisa morder para cima

    Na noite de segunda-feira o governo conseguiu uma bonita "vitória maiúscula" na Câmara dos Deputados. Bonita, mas literária. A Constituição limitará as despesas públicas impondo um teto ao governo federal.
    Ainda na fase da negociação, estabeleceu-se que nas áreas da saúde e da educação o limite só vigorará a partir de 2018. Pode ter sido uma boa ideia, mas foi um mau começo.
    Em tese, o paraíso da racionalidade deverá durar 20 anos. Ganha um convite para o próximo jantar de deputados no Alvorada quem tiver a menor ideia do estado das contas públicas em 2036.
    A Lei da Responsabilidade Fiscal é de 2000. Em apenas 15 anos desgraçaram-se orçamentos e pedalaram-se despesas de tal forma que o país está quebrado. No governo, como numa padaria, cortam-se despesas passando-se a faca em números. Desde o dia em que assumiu a Presidência, Temer oferece uma sensação de que, com ele, as coisas pararão de piorar. Já seria alguma coisa, mas daí a melhorarem, vai uma enorme distância. O futuro a Deus pertence, mas o passado está aí, disponível.
    Recuando-se 20 anos cai-se no ano da graça de 1996. Empresários, áulicos e parlamentares achavam que o instituto da reeleição de presidentes, governadores e prefeitos seria um bom negócio para o país. Em 1996 Fernando Henrique Cardoso batalhava pela reforma da Previdência que defendera durante a campanha eleitoral de 1994. Teve uma vitória na Câmara, festejou o placar de 352 a 134, mas houve mais teatro do que reforma.
    O último negociador do projeto do governo foi o deputado Michel Temer. Ajudou bastante, mas FHC ditou para seu gravador: "Vale a pena registrar [que] na última hora o Michel Temer mudou coisas muito importantes que havia combinado conosco, tornando a reforma previdenciária muito pouco eficaz para o combate a uma porção de abusos." À época, Temer conseguiu aquilo que era possível nas negociações com o Congresso. Passaram-se 20 anos, FHC tornou-se um Pai da Pátria e a batata quente está no colo de Temer.
    A reforma da Previdência é necessária e chega a ser consensual a necessidade da elevação da idade mínima para o acesso à aposentadoria, mas o demônio está nos detalhes e o governo ainda não mostrou suas cartas. Nas que mostrou, fabrica exceções.
    Seis Estados (RJ, RS, MG, BA, SE, RO) e Brasília estão sem caixa para pagar o 13º de seus servidores. Os responsáveis por essa ruína não foram os aposentados do andar de baixo, aqueles que recebem até dois salários mínimos. De onde sairá o socorro, não se sabe. Pelo andar da carruagem, a lei de renegociação das dívidas dos Estados será renegociada antes de ter sido aprovada.
    O governo federal vem se mostrando bonzinho no pantanoso terreno da privataria. Há aeroportos e rodovias que não conseguem pagar à Viúva os aluguéis das concessões que contrataram. Coisa de R$ 2,3 bilhões em contas atrasadas.
    Assim como os governadores e prefeitos caloteiros ganharam um refresco, os empresários já conseguiram um mimo, espichando suas dívidas para dezembro. Querem mais e receberão mais.
    Para que a PEC dos gastos públicos seja eficaz, ela precisa ter dentes afiados e disposição de morder, preferencialmente para cima.


    © Todos os direitos reservados ao jornal Folha de São Paulo e ao jornalista e colunista da Folha de São Paulo Elio Gaspari.

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    Para enfrentar a crise, Temer aumenta gastos com publicidade

    Para enfrentar a crise, Temer aumenta gastos com publicidade


    "Essa foi a situação encontrada pelo governo", grita a dispendiosa campanha veiculada nos principais jornais do país na quarta-feira (5). A longa peça publicitária estampa um retrato detalhado das consequências da crise econômica que vivemos e do ajuste fiscal iniciado em 2015.

    Tentando esconder a participação de Temer e de parte de seus ministros no governo eleito e derrubado, o anúncio enumera despesas federais não pagas; transferências atrasadas a Estados, municípios e organismos internacionais; obras públicas inacabadas por falta de recursos, e até prejuízos de empresa estatais.
    "Vamos tirar o Brasil do vermelho para voltar a crescer", convoca a frase-título que manda o país de volta aos tempos da Guerra Fria. Mais fácil que pescar o trocadilho é perceber que as propostas que o governo coloca na mesa estão na origem do desastre e não vão levar à retomada do crescimento. Menos ainda ao saneamento das contas públicas.

    A receita defendida e adotada desde o ano passado para nos tirar de um quadro fiscal deteriorado pela crise econômica –e a consequente queda de arrecadação tributária– está justamente na origem de boa parte dos problemas elencados. A aprovação de um deficit maior (de R$ 170 bilhões para 2016 e R$ 139 bilhões para 2017) pode até servir para quitar pagamentos atrasados, que são em grande medida o resultado do contingenciamento recorde em 2015 de gastos e do corte de despesas efetivas de cerca de 3% em termos reais –sendo mais de 30% nos investimentos.
    Mas não é essa a mensagem dos publicitários do governo, que parecem querer vender a ideia de que farão um ajuste fiscal ainda mais rigoroso. As contradições são muitas.
    Primeiro, se o corte de gastos nos próximos anos fosse ainda mais drástico do que o realizado pelo governo Dilma no ano passado, as obras mencionadas como inacabadas jamais seriam concluídas. 
    No entanto, a PEC do "teto" de gastos, que a propaganda quer ajudar a aprovar, em nada garante esse caminho. O limite previsto pela PEC 241 para o crescimento das despesas é dado pela taxa de inflação do ano anterior, o que permite um aumento real de gastos enquanto a inflação cair.
    Segundo, obras inacabadas só existem quando há obras iniciadas, o que passa longe dos planos do governo Temer para o futuro. Um congelamento no total das despesas de cada Poder forçaria uma redução ainda maior nos investimentos públicos em proporção do PIB.
    Terceiro, não há ajuste fiscal possível sem o crescimento das receitas do governo, o que por sua vez depende da eliminação das desonerações fiscais e da própria retomada do crescimento econômico. Note-se que, ao contrário do que se costuma propagar, as despesas desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff cresceram menos do que nos governos anteriores. O problema é que as receitas também.
    Mas como retomar o crescimento desligando de vez o motor dos investimentos públicos, se o resto do mundo ainda patina e a massa de desempregados não contribuirá em nada para uma retomada do consumo e das vendas? Qual empresário vai investir em novas máquinas se a capacidade ociosa da indústria continua aumentando e mal há dinheiro para pagar dívidas anteriores?
    A propaganda de governos autoritários costuma combater seus adversários canalizando os temores com a crise para bodes expiatórios, mas preocupam-se em entregar alguma coisa: emprego, renda, crescimento econômico. Concentrar os investimentos públicos em publicidade pode ser pouco para galvanizar algum apoio popular. 


    © Todos os direitos reservados à Colunista da Folha de São Paulo Laura Carvalho e à Folha de São Paulo.

    Laura Carvalho é professora do Departamento de Economia da FEA-USP com doutorado na New School for Social Research (NYC). Escreve às quintas-feiras na Folha de São Paulo.

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    terça-feira, 11 de outubro de 2016

    A PEC 241/2016, limita gastos públicos, incluindo as áreas de Saúde e Educação.

    Economistas lançam documento com críticas à PEC dos gastos públicos

    BRASÍLIA  -  Com o argumento de que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/16 vai retirar direitos sociais nas área de saúde, educação e assistência social e não vai ajudar na retomada do crescimento, economistas lançaram nesta segunda-feira um documento com críticas à proposta. A PEC, que o governo chama de Novo Regime Fiscal, que obteve apde 366 deputados, contra 111 votos contrários nesta noite, na votação em primeiro turno na Câmara dos Deputados, limita durante 20 anos o ritmo de crescimento dos gastos da União à taxa de inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).


    A PEC 241/2016, limita gastos públicos, incluindo as áreas de Saúde e Educação.
    De acordo com o novo regime fiscal, as despesas serão limitadas com base no valor do ano anterior somado à inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), publicado pelo IBGE.
    A partir do décimo ano de vigência, a proposta poderá ser alterada pelo presidente em exercício. O objetivo geral da medida é contribuir para o ajuste fiscal, a fim de retomar a confiança no mercado brasileiro, atrair investimentos e acelerar a atividade econômica.

    Saúde e Educação

    Uma das principais críticas ao teto de gastos é o possível impacto nas áreas sociais. O HuffPost Brasil conversou com deputados a favor e contra a medida sobre o tema.

    Manobra

    A proposta PEC 241 foi aprovada na comissão especial da Câmara dos Deputados sobre o tema na última quinta-feira (6). Pelo regimento interno, seriam necessárias duas sessões no plenário para votar o texto.
    Como o número de 51 deputados não foi atingido na sexta-feira (7), parlamentares da base irão tentar aprovar um requerimento para quebrar o interstício. Para isso, é necessário apoio de um décimo dos 512 deputados ou acordo de lideranças.
    Para aprovar a PEC é preciso do aval de três quintos dos votos, em dois turnos. Se aprovado, o texto segue para o Senado, onde também é necessária a mesma proporção, em duas votações, para passar.

    A PEC 241 corta recursos da Saúde e Educação?

    Como é hoje:
    Atualmente, os gastos mínimos com as duas áreas estão constitucionalmente vinculados à receita líquida do Governo Federal.
    Neste ano, seriam aplicados 13,2% da receita líquida com Saúde. O percentual subiria gradativamente até alcançar 15% em 2010.
    O gasto mínimo com Educação é de 18% da receita da União resultante de impostos. Ou seja, os recursos dos setores sociais crescem se a economia cresce.
    Como a PEC propõe:
    A partir de 2018, o mínimo gasto com Saúde e Educação será o valor do ano anterior mais a inflação no período, calculada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), publicado pelo IBGE.
    Assim, a projeção é que a evolução de recursos para as duas áreas seja mais previsível e não dependa diretamente da retomada do crescimento econômico.
    Por que dizem que os recursos vão reduzir:
    Se o Brasil tiver um desempenho econômico de destaque, com resultados extraordinários do Produto Interno Bruto (PIB) e de arrecadação de impostos, Saúde e Educação ganhariam mais dinheiro pela regra atual.
    Por que dizem que os recursos não vão reduzir:
    A PEC continua prevendo um aumento de gastos com as áreas sociais, mas em conjunto com o equilíbrio fiscal. O novo cálculo garante previsibilidade e como a economia do País anda mal, dificilmente Saúde e Educação estariam melhor no outro sistema.
    Qual o melhor jeito?
    Na avaliação de consultores legislativos e econômicos responsáveis pela elaboração do texto da PEC apresentado na comissão especial da Câmara, não há como prever se a arrecadação seria melhor em um sistema ou no outro.
    Isso porque o cálculo depende de variáveis como PIB, inflação e taxa de juros, que devem ser afetadas caso a PEC seja aprovada.
    Tópicos: PEC 241

    https://issuu.com/politicasocial/docs/pec_241_-_austeridade