domingo, 17 de agosto de 2014

Vladimir Safatle - Pela extinção da PM

obtido de: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/1124692-pela-extincao-da-pm.shtml

24/07/2012 - 03h30

Pela extinção da PM

 

No final do mês de maio, o Conselho de Direitos Humanos da ONU sugeriu a pura e simples extinção da Polícia Militar no Brasil. Para vários membros do conselho (como Dinamarca, Espanha e Coreia do Sul), estava claro que a própria existência de uma polícia militar era uma aberração só explicável pela dificuldade crônica do Brasil de livrar-se das amarras institucionais produzidas pela ditadura.

No resto do mundo, uma polícia militar é, normalmente, a corporação que exerce a função de polícia no interior das Forças Armadas. Nesse sentido, seu espaço de ação costuma restringir-se às instalações militares, aos prédios públicos e aos seus membros.

Apenas em situações de guerra e exceção, a Polícia Militar pode ampliar o escopo de sua atuação para fora dos quartéis e da segurança de prédios públicos.

No Brasil, principalmente depois da ditadura militar, a Polícia Militar paulatinamente consolidou sua posição de responsável pela completa extensão do policiamento urbano. Com isso, as portas estavam abertas para impor, à política de segurança interna, uma lógica militar.

Assim, quando a sociedade acorda periodicamente e se descobre vítima de violência da polícia em ações de mediação de conflitos sociais (como em Pinheirinho, na cracolândia ou na USP) e em ações triviais de policiamento, de nada adianta pedir melhor "formação" da Polícia Militar.
Dentro da lógica militar, as ações são plenamente justificadas. O único detalhe é que a população não equivale a um inimigo externo.

Isto talvez explique por que, segundo pesquisa divulgada pelo Ipea, 62% dos entrevistados afirmaram não confiar ou confiar pouco na Polícia Militar. Da mesma forma, 51,5% dos entrevistados afirmaram que as abordagens de PMs são desrespeitosas e inadequadas.

Como se não bastasse, essa Folha mostrou no domingo que, em cinco anos, a Polícia Militar de São Paulo matou nove vezes mais do que toda a polícia norte-americana ("PM de SP mata mais que a polícia dos EUA", "Cotidiano").  (Ou ver sequência de reportagens sobre a Polícia Militar em

http://seguranca-em-sao-paulo-geraldorjr.blogspot.com.br/2013/06/a-policia-militar-de-sao-paulo-historia.html

Ou seja, temos uma polícia que mata de maneira assustadora, que age de maneira truculenta e, mesmo assim (ou melhor, por isso mesmo), não é capaz de dar sensação de segurança à maioria da população.
É fato que há aqueles que não querem ouvir falar de extinção da PM por acreditar que a insegurança social pode ser diminuída com manifestações teatrais de força.

São pessoas que não se sentem tocadas com o fato de nossa polícia torturar mais do que se torturava na ditadura militar. Tais pessoas continuarão a aplaudir todas as vezes em que a polícia brandir histericamente seu porrete. Até o dia em que o porrete acertar seus filhos.


VLADIMIR SAFATLE escreve às quartas-feiras nesta coluna.
Vladimir Safatle Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às terças na Página A2 da versão impressa.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Camila Jourdan: "Inquérito é ficção".



Acusada de articular atos violentos, professora diz que inquérito é ficção



"Do pouco que li, posso dizer que esse processo é uma obra de literatura fantástica de má qualidade"
Camila Jourdan


Por 13 dias, a professora universitária Camila Jourdan, 34, permaneceu em uma cela no complexo penitenciário de Bangu, na zona oeste carioca. Ela é uma das protagonistas do inquérito com mais de 2.000 páginas, produzido pela Polícia Civil do Rio, que, sob a classificação de "quadrilha armada", responsabiliza 23 pessoas pela organização de ações violentas em protestos.
"Do pouco que li, posso dizer que esse processo é uma obra de literatura fantástica de má qualidade", definiu Camila, em entrevista à Folha, no sábado (26), dois dias após conquistar sua liberdade provisória.
Ela cita o teórico do anarquismo Mikhail Bakunin, ao falar sobre a fragilidade do inquérito. Em mensagens interceptadas pela polícia, Bakunin era citado por um manifestante e, a partir daí, o filósofo russo, morto em 1876, passou a figurar nos autos como potencial suspeito.

Por volta das 6h de 12 de julho, véspera da final da Copa, três policiais civis invadiram o apartamento da professora, que estava acompanhada pelo namorado, Igor D'Icarahy, 24, com mandados de prisão contra ambos.

Daniel Marenco/Folhapress
Camila Jourdan, presa na véspera da final da Copa e denunciada por formação de quadrilha armada
Camila Jourdan, presa na véspera da final da Copa e denunciada por formação de quadrilha armada
De acordo com o inquérito, os agentes encontraram uma garrafa com gasolina, uma bomba de fabricação caseira e outra conhecida como "cabeção de nego". Em diálogos grampeados, Camila faz referências a "livros" e "canetas", que, segundo os investigadores, seriam respectivamente coquetéis molotov e rojões.
Camila se recusou a falar sobre provas contra ela por orientação de Marino D'Icarahy, seu advogado e pai de Igor, que diz que as provas foram plantadas pela polícia.

LÍDER "FABRICADA"
Às referências constantes a seu nome no inquérito, Camila atribui uma razão: "existe uma necessidade de se fabricar líderes para essas manifestações. E quem se encaixa muito bem no papel da mentora intelectual? A professora universitária. Cai como uma luva, entendeu?"
Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Camila Jourdan sempre foi associada à excelência acadêmica. Um currículo "invejável", segundo um diretor da UERJ. Formada em filosofia, concluiu o doutorado pela PUC-RJ, com direito a um período de estudos na Universidade de Sorbonne, em Paris. Sua tese foi sobre a obra do filósofo Ludwig Wittgenstein.
"É uma excelente pesquisadora que se destacou por um trabalho original e muito sério", avalia Luiz Carlos Pereira, seu orientador nas teses de mestrado e doutorado.
De família da zona norte, Camila é neta de general. Seu pai morreu de câncer, quando era adolescente. Solteira, conta com o apoio da mãe para criar a filha, de 12 anos.
Classificada em primeiro lugar na seleção para professores da UERJ em 2010, ela atualmente é coordenadora do curso de pós-graduação em filosofia. Diz não gostar da burocracia inerente ao cargo. Prefere a sala de aula.
Ao longo da entrevista, manteve o mesmo tom de voz, sem alterações dramáticas. Conduz sua narrativa de forma didática, com ironia, e pontua a argumentação com perguntas ao interlocutor.
A professora recorre ao filósofo francês Michel Foucault para explicar que sua formação acadêmica está dissociada de sua participação na OATL (Organização Anarquista Terra e Liberdade) e na FIP (Frente Independente Popular), grupos acusados no inquérito de promover ações violentas em protestos.
"Foucault diz que os intelectuais descobriram que as massas não precisam deles como interlocutores. Não tenho autoridade para falar sobre a opressão de ninguém. O movimento não precisa de mim para este papel".
Camila credita à FIP o mérito de tirar das manifestações do Rio a influência dos militantes de direita e dos partidos de esquerda.
Define-se como anarquista. Começou a se interessar na adolescência. "Eu gostava muito de Raul Seixas e descobri que ele era anarquista. Ali decidi começar a ler sobre o assunto." Aos 14 anos, saía para distribuir panfletos pregando o voto nulo. Sua estreia em protestos de rua foi no fim da década de 1990, época das privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso.
O desempenho do governo Luiz Inácio Lula da Silva reforçou suas convicções: "O Lula era visto como a esperança de mudança e fez um governo à direita. Esfregou na cara das pessoas aquilo que os anarquistas sempre disseram: não adianta você mudar as peças do jogo se o problema é o jogo."
Ela considera o processo eleitoral, "viciado", incapaz de provocar alguma modificação social ou política. "A participação política não pode se resumir a um objeto de consumo. Mandam o eleitor comprar um candidato. O ser humano precisa de participação política real e permanente. Nós fazemos isso nas manifestações e nos trabalhos de base, com movimentos sociais e assembleias populares", afirma.
Atribui as ações violentas dos manifestantes a uma resposta à truculência policial."Existe o direito à legítima defesa". Rechaça a tese de que a baixa adesão às manifestações recentes se deve à violência e aponta a maior conquista neste processo.
"Ninguém em sã consciência achou que junho representava um momento revolucionário. Foi importante no sentido do empoderamento da população. Isso nem esta tentativa de criminalização pode tirar. Está feito. Neste aspecto, a gente já ganhou."
Camila analisa a possibilidade de perder e ser condenada: "Tenho receio do que pode acontecer porque sei que não vivemos em uma sociedade justa. Não acredito neste Estado como um Estado democrático. Se acontecer [a condenação], ao menos, não vou me decepcionar neste sentido."

Editoria de Arte/Folhapress
Obtido de: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1492074-acusada-de-articular-atos-violentos-professora-diz-que-inquerito-e-ficcao.shtml

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