quarta-feira, 1 de abril de 2015

Chomsky: o mundo que nossos netos herdarão?

Chomsky: o mundo que nossos netos herdarão?

on 25/03/2015


Como EUA fortalecem, numa época já turbulenta, surgimento de grupos como ISIS. A estranha relação Washington-Telaviv. Nas mudanças climáticas, sinal de decadência do sistema

Entrevista a David Barsamian, na Jacobin | Tradução Pedro Lucas Dulci

Entrevistado pelo jornalista David Barsamian, o professor Noam Chomsky, explica as raízes do Estado Islâmico (ISIS) e porque os EUA e seus aliados são responsáveis pelo grupo. Particularmente, argumenta, a invasão do Iraque em 2003 provocou um divisão sectária que desestabilizou a sociedade iraquiana. Solo fértil para os sauditas estimularem grupos radicais.
A entrevista também toca no massacre israelense na faixa de Gaza, destacando o papel vital de Israel no tabuleiro político norte-americano. Chosmky conta, por exemplo, como Telaviv foi usada por Washington para fornecer, ao exército a Guatemala, as armas que permitiram o massacre contra comunidades maias. Era a época do governo Ronald Reagan; o Congresso havia proibido tal assistência militar — Israel prontificou-se a ser solução.
Por fim, Chomsky compartilha seus pensamentos sobre o crescente movimento pela justiça climática e porque acha que essa é a questão mais urgente hoje.


O Oriente Médio está em chamas, da Líbia até o Iraque. Existem novos grupos jihadistas. O foco atual é o ISIS. O que dizer sobre ISIS e as suas origens?
Há uma interessante entrevista que só apareceu há alguns dias atrás, com Graham Fuller, um ex-agente da CIA, um dos principais fontes da inteligência e dos analistas mainstream sobre o Oriente Médio. O título é “Os Estados Unidos criaram o ISIS”. Aparentemente, seria mais uma das milhares de teorias da conspiração que rondam o Oriente Médio.
Mas trata-se de algo diferente — que vai direto ao coração do establishment norte-americano. Fuller apressa-se em frisar que sua hipótese não significa dizer que os EUA decidiram dar existência ao ISIS e, em seguida, o financiaram. Seu — e eu acho que é algo acurado — é que os EUA criaram o pano de fundo em que o ISIS cresceu e se desenvolveu. Em parte, apenas devido à abordagem devastadora padrão: esmagar aquilo de que você não gosta.
Em 2003, os EUA e a Grã-Bretanha invadiram o Iraque, um crime grave. A invasão foi devastadora. O Iraque já havia sido virtualmente destruído, em primeiro lugar pela década de guerra com o Irã — no qual, aliás, Bagdá foi apoiado por os Washington — e depois pela década de sanções econômicas e políticas.
Tais sanções foram descritas como “genocidas” pelos dois respeitados diplomatas internacionais que os administravam e, que, por esse motivo, renunciaram em protesto. Elas devastaram a sociedade civil, fortaleceram o ditador, obrigaram a população a confiar nele para a sobrevivência. Essa é provavelmente a razão pela qual ele não seguiu o caminho natural de todos os outros ditadores que foram derrubados.
Por fim, os EUA simplesmente decidiram atacar o país em 2003. O ataque é comparado por muitos iraquianos à invasão mongol de mil anos atrás. Muito destrutiva. Centenas de milhares de pessoas mortas, milhões de refugiados, milhões de outras pessoas desalojadas, destruição da riqueza arqueológica e da riqueza do país da época suméria.
Um dos efeitos da invasão foi instituir imediatamente divisões sectárias. Parte do “brilhantismo” da força de invasão e de seu diretor civil, Paul Bremer, foi separar os grupos — sunitas, xiitas e curdos — uns dos outros, e instigá-los uns conta os outros. Após alguns anos, houve um conflito sectário brutal, deflagrado pela invasão.
Você pode enxergar isso se olhar para Bagdá. Um mapa de Bagdá de, digamos, 2002, revela uma cidade mista: sunitas e xiitas vivem nos mesmos bairros e casam entre si. Na verdade, às vezes nem sabiam quem era sunita, e quem era xiita. É como saber se seus amigos estão em um ou outro grupo protestante. Existiam diferenças, mas não eram hostis.
Na verdade, durante alguns anos ambos os lados diziam: nunca haverá conflitos sunitas-xiitas; Estamos muito misturados na natureza de nossas vidas, nos locais onde vivemos, e assim por diante. Em 2006, houve uma guerra feroz. Esse conflito se espalhou para todo o Oriente Médio — hoje, cada vez mais dilacerado por conflitos entre sunitas e xiitas.
A dinâmica natural de um conflito como esse é que os elementos mais extremos comecem a assumir o controle. Eles tinham raízes. Estão no mais importante aliado dos EUA, a Arábia Saudita, com a qual Washington está seriamente envolvidos desde a fundação do Estado nacional. É uma espécie de ditadura da família. O motivo é sua uma enorme quantidade de petróleo.
Mesmo do domínio dos EUA, a Grã-Bretanha sempre preferiu o islamismo radical ao nacionalismo secular, no mundo árabe. E quando os EUA passaram a ser hegemônicos no Oriente Médio, adotaram a mesma posição. O islamismo radical tem seu centro na Arábia Saudita. É o estado islâmico mais extremista, mais radical no mundo. Faz o Irã parecer um país tolerante e moderno, em comparação — e os países seculares do Oriente Médio árabe ainda mais, é claro.
A Arábia Saudita não é apenas dirigida por uma versão extremista do Islã, os salafistas wahhabistas. É também um Estado missionário. Usa seus enormes recursos petrolíferos para promulgar suas doutrinas em toda a região. Estabelece escolas, mesquitas, clérigos, em todo o lugar, do Paquistão até o Norte de África.
Uma versão extremista do extremismo saudita foi assumida pelo ISIS. Este grupo cresceu ideologicamente, portanto, a partir da forma mais extremista do Islã — a versão da Arábia Saudita — e dos conflitos engendrados pela invasão norte-americana, que quebraram o Iraque e já se espalharam por toda a região. Isso é o que Fuller argumenta, em sua hipótese.
A Arábia Saudita não só fornece o núcleo ideológico que levou ao extremismo radical do ISIS (e de grupos semelhantes que estão surgindo em diversos países), mas também o financia e lhe oferece apoio ideológico. Não é o governo de Riad que o faz — mas sauditas e kwaitianos ricos. O ataque lançado à região pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha é a fonte, onde tudo se origina. Isso é o que significa dizer os EUA criaram ISIS.
Pode ter bastante certeza de que, à medida que esses conflitos se desenvolvem, eles se tornarão mais extremistas. Os grupos mais brutais tenderão a assumir o controle. É o que acontece quando a violência se torna o meio de interação. É quase automático: em favelas ou nos assuntos internacionais. As dinâmicas são perfeitamente evidentes. É este o papel do ISIS vem. E se for destruído, surgirá talvez algo ainda mais extremo.
Os meios de comunicação são obedientes. No discurso de 10 de setembro de Obama, ele citou dois países como supostas histórias de sucesso na estratégia de contra-insurgência dos EUA: Somália e Iêmen
O caso da Somália é particularmente horrendo. O Iêmen já é suficiente ruim, mas a Somália é um país extremamente pobre. Não há tempo para contar toda a história. Mas uma das grandes conquistas, um dos grandes orgulhos da política de “contraterrorismo” da administração Bush foi que eles tinham conseguido fechar uma instituição de caridade, a Barakat, que estaria alimentando o terrorismo na Somália. Enorme comoção na imprensa. Foi para eles uma conquista real.
Alguns meses mais tarde, os fatos começaram a vazar. A caridade não tinha absolutamente nada a ver com o terrorismo na Somália. O episódio tinha a ver era com bancos, comércio, assistência, hospitais. Atingir a Barakat era uma espécie de tentativa de manter a Somália profundamente empobrecida e economicamente golpeada. Existem algumas linhas sobre isso. Você pode ler em livros sobre finanças internacionais.
Houve um momento em que os chamados tribunais islâmicos, que eram chamados de uma organização islâmica, tinham conseguido uma espécie de paz na Somália. Não era um belo regime, mas pelo menos era pacífico e as pessoas o aceitavam mais ou menos. Os EUA não iriam tolerar isso, então apoiaram uma invasão etíope para destruí-la e transformar o lugar em um tumulto horrível. Essa é a grande conquista.
O Iêmen é uma história de horror própria.
Vamos à disputa de Israel contra os palestinos. Há algum tempo, um jornalista norte-americano, David Greene, conversou com um repórter em Gaza e fez o seguinte comentário: “Ambos os lados sofreram enormes danos”. Pensei para mim mesmo, isso significaria que Haifa e Tel Aviv foram reduzidas a escombros, como Gaza foi? Você se lembra do comentário Jimmy Carter sobre o Vietnã?
Não só me lembro, como acho que fui a primeira pessoa a comentar sobre isso, e provavelmente sou até hoje praticamente a única pessoa a comentar sobre ele. Fizeram a Carter, o defensor dos direitos humanos, uma pergunta leve, numa entrevista coletiva em 1977: você acha que temos alguma responsabilidade de ajudar os vietnamitas depois da guerra? Ele respondeu que não tínhamos nenhuma dívida com eles – “a destruição foi mútua”.
Isso passou sem comentários. E foi melhor do que o seu sucessor. Alguns anos mais tarde, George Bush I, o “estadista”, estava comentando sobre as responsabilidades norte-americanas após a Guerra do Vietnã, e disse: há um problema moral que permanece. Os vietnamitas do norte não empregaram recursos suficientes para entregar a nós os ossos dos pilotos americanos. Estes pilotos inocentes, derrubados sobre Iowa pelo assassino vietnamita quando estavam pulverizando colheitas, ou algo assim… Mas Bush disse: somos um povo misericordioso, por isso vamos perdoá-los por isso e vamos permitir-lhes entrar em um mundo civilizado…
O que significava: vamos permitir que eles entrem nas relações comerciais e assim por diante, o que, naturalmente, nós barramos, se eles pararem o que estão fazendo e dedicarem recursos suficientes para superar este crime pós Guerra do Vietnã. Sem comentários.
Uma das coisas que as autoridades israelenses continuam trazendo à tona, e é repetido aqui na mídia corporativa, ad nauseam, é o estatuto do Hamas. Eles não aceitam a existência do Estado de Israel, querem tirá-lo do mapa. Você tem alguma informação sobre a carta e seus antecedentes.
A carta foi produzida por, aparentemente, um grupo de pessoas, talvez dois ou três, em 1988, numa altura em que Gaza estava sob forte ataque israelense. Você se lembra de ordens de Yitzhak Rabin. Foi um levante fundamentalmente não-violento, ao qual Israel reagiu de modo muito violentamo, matando líderes, torturando, quebrando ossos, de acordo com as ordens de Rabin, e assim por diante. E bem no meio de tudo isso, um número muito pequeno de pessoas saiu com o que chamaram de um estatuto do Hamas.
Ninguém prestou atenção a ele desde então. Era um documento terrível. Mas desde então, as únicas pessoas que chamaram a atenção para ele foram a inteligência israelense e a mídia norte-americana. Ninguém mais se preocupa com isso. Khaled Mashal, o líder político de Gaza anos atrás, disse: olha, é passado, “já era”. Não tem nenhum significado. Mas isso não importa. Porque é propaganda valiosa para Telaviv.
Há também o fato de que, mesmo não sendo chamados de “estatuto”, há princípios fundadores da coalizão de governo em Israel. Nesse caso, não se trata de um pequeno grupo de pessoas, que estão sob ataque, mas da coalizão governista, o Likud. O núcleo ideológico do Likud é o Herut, de Menachem Begin. Eles sim têm documentos fundadores. Seus documentos fundadores dizem que Jordânia de hoje faz parte da terra de Israel; Israel nunca renunciará ao seu direito à terra da Jordânia. O que está agora chamado Jordânia eles chamam as terras históricas de Israel. Eles nunca renunciaram a isso.
O Likud,  partido do governo, tem um programa eleitoral – foi enunciado em 1999 e nunca revogado, é o mesmo hoje. Diz explicitamente que nunca haverá um Estado palestino a oeste do Rio Jordão. Em outras palavras, “estamos empenhados, por princípio, na destruição da Palestina”. E não são apenas palavras. Os governantes de Israel agem dia a dia para implementá-las.
Há uma história interessante sobre a chamada Carta da Organização pela Libertação da Palestina, a OLP. Por volta de 1970, o ex-chefe da inteligência militar israelense, Yehoshafat Harkabi, publicou um artigo em uma das principais revistas de Israel em que trouxe à luz algo chamado de “Carta da OLP” ou algo semelhante. Ninguém nunca tinha ouvido falar dela, ninguém estava prestando atenção nela.
E a carta diz: nosso objetivo é a nossa terra, vamos assumi-la. Na verdade, não era diferentemente das alegações do Herut, exceto o lugar de origem. Isto se tornou instantaneamente uma questão enorme em toda a mídia. Foi chamada de “A aliança OLP”. “A aliança OLP” planeja destruir Israel. Ninguém sabia nada sobre isso, mas repentinamente tornou-se uma questão importante.
Eu conheci um ex-chefe da inteligência militar israelense, Harkabi, alguns anos mais tarde. Era um moderado, aliás, um cara interessante. Tornou-se bastante crítico da política israelense. Tivemos uma entrevista aqui no MIT. Eu lhe perguntei: “Por que você trouxe à tona o documento, no instante em que pensavam em revogá-lo?” Ele olhou para mim com o olhar vazio, que você aprende a reconhecer quando você está falando com fantasmas. Eles são treinados para fingir que não entendem o que você está falando, embora entendam perfeitamente.
Ele disse: “Oh, eu nunca ouvi isso”. É algo além do concebível. É impossível que o chefe da inteligência militar israelense não saiba o que sei por ter lido trechos de imprensa árabe em Beirute. É claro que ele sabia.
Existe todo tipo de motivos para acreditar que decidiu trazer à tona precisamente porque reconheceu — ou seja, a inteligência israelense reconheceu — que seria uma peça útil de propaganda e é melhor tentar garantir que os palestinos a mantenham. É lógico que se nós os atacamos, eles dirãop: nós não vamos revogar nosso estatuto sob pressão. É o que está acontecendo com o estatuto do Hamas.
Hoje é impossível documentar isso, por uma razão simples. Os documentos estavam todos nos escritórios da OLP em Beirute. E quando Israel invadiu Beirute, roubaram todos os arquivos. Presumo que devem tê-los em algum lugar, mas ninguém vai ter acesso a eles.
O que explica a unanimidade quase absoluta do Congresso dos EUA em apoio Israel? Mesmo Elizabeth Warren, o senadora democrata altamente elogiada de Massachusetts, votou a favor desta resolução sobre a auto-defesa.
Ela provavelmente não sabe nada sobre o Oriente Médio. Acho que isso é bastante óbvio. Tome as armas dos EUA pré-posicionadas em Israel para serem usadas em possíveis ações militares na região. Isso é um pequeno pedaço de uma aliança militar e de inteligência muito próxima, que remonta a décadas. Ela realmente decolou depois de 1967, embora já existisse embrionariamente.
Os militares e a inteligência dos EUA incluem Israel entre suas bases principais. Na verdade, uma das revelações mais interessantes do WikiLeaks foi a relação dos centros considerados estratégicos pelo Pentágono, ao redor do mundo — aqueles que serão defendidos a todo custo. Um deles é uma grande instalação militar, algumas quilômetros distante Haifa: as indústrias militares Rafael.
Muita tecnologia drone foi desenvolvida ali. Depois, a sede e a gestão da Rafael foram mudadas para Washington, onde está o dinheiro. Isso é indicativo do tipo de relacionamento que existe. E vai muito além. Os investidores norte-americanos estão num relação de amor com Israel. Warren Buffet acaba de comprar uma empresa israelense por alguns bilhão de dólares e anunciou que, fora os EUA, Israel é o melhor lugar para investir. As grandes empresas, como a Intel e outras, estão investindo pesadamente em Israel. É um cliente valioso: é estrategicamente localizado, complacente, faz o que os EUA querem, está disponível para a repressão e violência. Os EUA têm usado cada vez mais, como uma forma de contornar as restrições do Congresso e de alguns setores da população sobre violência.
Tome, por exemplo, o caso da Guatemala. O presidente Ronald Reagan, que foi extremamente brutal e violento, bem como um terrível racista, quis fornecer suporte direto para o ataque do Exército da Guatemala contra os índios maias — algo literalmente genocida. Houve uma resolução do Congresso que bloqueou a resolução. Então ele fez a ponte com seus clientes terroristas.
O principal deles foi Israel — também participaram Taiwan e alguns outros. Israel forneceu as armas para o Exército da Guatemala – até hoje eles usam armas israelenses – providenciando treinamento para executarem o ataque genocida. Esse é um dos seus serviços. Fizeram o mesmo na África do Sul.
Agora, crianças e muitos outros refugiados estão fugindo de três países: El Salvador, Honduras e Guatemala. Não da Nicarágua, tão pobre como Honduras. Existe uma diferença? Sim. A Nicarágua é o único país da região que tinha, na década de 1980, uma maneira de se defender contra as forças dos EUA – um exército. Nos outros países o exército eram as forças terroristas, apoiadas e armadas pelos EUA, ou por seu cliente israelense no pior dos casos. Então é isso que você tem.
Existe uma grande quantidade de relatórios otimista dizendo que o fluxo de crianças da América Central para os EUA diminuiu. Por quê? Porque nós pressionamos o governo mexicano e lhe dissemos para usar a força e impedir que as vítimas de nossa violência fujam para os EUA, tentando sobreviver. Agora, os mexicanos fazem isso por nós, por isso há menos pessoas vindo para a fronteira. É uma grande conquista humanitária de Obama…
Incidentalmente, Honduras está na liderança. Por que Honduras? Porque em 2009, houve um golpe militar no país. O presidente Zelaya, que estava começando a fazer alguns movimentos em relação a reformas extremamente necessárias, foi derrubado e expulso do país. Eu não vou passar os detalhes, mas os EUA, sob Obama, foram um dos poucos países que reconheceu o regime golpista e a eleição que ocorreu sob a sua égide. Honduras transformou-se em uma história de horror pior do que era antes, batendo recordes no número de homicídios e violência.
Parece ter surgido uma oportunidade para que a população curda do Iraque alcance algum tipo de soberania. Isso se cruza, na verdade, com os interesses israelenses no Iraque. Eles têm apoiado os curdos, ainda que de forma clandestina, mas é bem sabido que Israel tem pressionado para a fragmentação do Iraque.
Eles estão fazendo isso. E isso é um dos pontos em que há conflito entre a política israelense e a norte-americana. As áreas curdas têm litoral. O governo do Iraque bloqueou sua exportação de petróleo, seu único recurso, e, claro, opõe-se a construção do Estado curdo. Os EUA até agora tem apoiado esta atitude.
Clandestinamente, há um fluxo de petróleo em algum nível da área curda na Turquia. Essa também é uma relação muito complexa. Massoud Barzani, líder curdo iraquiano, visitou a Turquia cerca de um ano atrás e fez alguns comentários bastante impressionantes. Ele era bastante crítico da liderança dos curdos turcos e estava claramente tentando estabelecer melhores relações com a Turquia, que tem reprimido violentamente os curdos turcos.
A maioria dos curdos no mundo está na Turquia. Você pode entender o porquê, do ponto de vista deles. Essa é a única saída para o mundo exterior. Mas a Turquia tem uma atitude dúbia a respeito. Um Curdistão independente, ao norte do Iraque, bem próximo às áreas curdas da Turquia, ou nas áreas curdas da Síria, poderia encorajar os esforços para autonomia no sudeste da Turquia, que é fortemente curda. Os turcos têm lutado muito brutalmente contra isso desde que a Turquia moderna surgiu, na década de 1920.
O Curdistão conseguiu, de alguma forma, atrair petroleiros transportar petróleo a partir de seu território. Esses navios estão vagando em torno do Mediterrâneo. Nenhum país irá aceitá-los, a não ser, provavelmente, Israel. Nós não podemos ter certeza, mas parece que estão ficando com um pouco. Os petroleiros curdos estão buscando alguma forma de descarregar seu petróleo no Mediterrâneo oriental. Isso não está acontecendo em um volume que permita ao Curdistão funcionar, mesmo para pagar seus funcionários.
Na chamada capital curda, Erbil, há arranha-céus sendo erguidos, abunda alguma riqueza. Mas é um tipo de sistema muito frágil, que não pode sobreviver. O país está completamente cercado por regiões hostis.
Em nosso último livro, Power Systems, eu lhe pergunto, “Você tem netos. Que tipo de mundo eles herdarão?”
O mundo que estamos criando para nossos netos é ameaçador. Uma das maiores preocupações é a relacionada ao aquecimento global.
Isso não é brincadeira. Esta é a primeira vez na história da espécie humana que temos de tomar decisões que irão determinar se haverá uma sobrevivência decente para nossos netos. Isso nunca aconteceu antes. Já tomamos decisões que estão acabando com espécies de todo o mundo em um nível fenomenal.
O nível de destruição de espécies no mundo de hoje está acima do nível de 65 milhões de anos atrás, quando um enorme asteróide atingiu a Terra e teve efeitos ecológicos horripilantes. Ele encerrou a era dos dinossauros, que foram aniquilados. Ele deixou uma pequena abertura para os pequenos mamíferos, que começaram a se desenvolver, e, finalmente, nós. A mesma coisa está acontecendo agora — a diferença é que somos o asteroide. O que estamos fazendo com o meio ambiente já está criando condições como as de 65 milhões anos atrás. A imagem não é bonita.
Em setembro do ano passado, uma das principais agências de monitoramentos científico internacional apresentou os dados sobre as emissões de gases de efeito estufa para o ano mais recente em registro, 2013. Eles atingiram níveis recordes: subiram mais de 2% para além do ano anterior. Nos EUA subiram ainda mais alto, quase 3%. No mesmo mês, o Journal of the American Medical Association saiu com um estudo sobre o número de dias super quentes previstos para Nova York, durante as próximas décadas. Estes dias vão triplicar — e os efeitos serão muito piores no Sul do planeta. Coincide com o aumento previto previsto do nível do mar, que vai colocar uma grande parte de Boston debaixo da água. Sem falar no  litoral plano Bangladesh, onde centenas de milhões de pessoas vivem, mas que serão desalojas.
Tudo isso é iminente. E neste exato momento a lógica das nossas instituições é conduzir o processo para frente. A Exxon Mobil, que é o maior produtor de energia, anunciou – e você realmente não pode criticá-los por isso, pois esta é a natureza do sistema capitalista, a sua lógica – que eles está direcionando todos os seus esforços para prospectar combustíveis fósseis, porque é rentável. Na verdade, isso é exatamente o que eles deveriam estar fazendo, no quadro institucional em que vivemos. Eles deveriam buscar lucros. E se isso elimina a possibilidade de uma vida digna para os netos, não é seu problema.
A Chevron, outra grande empresa de energia, tem um pequeno programa sustentável, principalmente por razões de relações públicas, mas estava indo razoavelmente bem, chegou a ser realmente rentável. Eles simplesmente encerraram os programas sustentáveis, porque os combustíveis fósseis são muito mais rentáveis.
Nos EUA, agora há perfuração em todo o lugar. Mas há um lugar onde foi um pouco limitado, terras federais. Lobbies de energia estão queixando-se amargamente de que Obama cortou o acesso a terras federais. O Departamento de Interior apresentou as estatísticas. É o oposto. A perfuração de petróleo em terras federais tem aumentado constantemente sob Obama. O que tem diminuído é de perfuração no mar.
Mas isso é uma reação ao desastre da British Petroleum no Golfo do México. Logo depois do desastre, a reação imediata foi a recuar. Mesmo as empresas de energia recuaram da perfuração em águas profundas. Os lobbies estão apresentando estes dados em conjundo — mas se você olhar para a perfuração em terra, ela só aumenta. Há muito poucas restrições. Essas tendências são muito perigosas, e você pode prever que tipo de mundo haverá para os seus netos.

Obtido de:

http://outraspalavras.net/destaques/chomsky-o-mundo-que-nossos-netos-herdarao/

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Entrevista de Renato Janine Ribeiro a Cynara Menezes


Entrevistado pela jornalista Cynara Menezes.

Janine, novo ministro da Educação, aconselha Dilma a se comunicar melhor com o povo

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(Renato Janine Ribeiro em sua casa em São Paulo. Foto: CartaCapital)
Em novembro do ano passado, estive na casa do professor Renato Janine Ribeiro em São Paulo para conversar sobre política. Enquanto tomávamos um café em seu simpático sobrado na Aclimação, Janine me falou de suas preocupações com o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, recém-reeleita. A entrevista foi publicada na revista CartaCapital. Com a sua escolha para ministro da Educação, resolvi divulgar aqui uma versão estendida daquele bate-papo.
As críticas que o filósofo fazia ao governo e também à oposição são muito pertinentes. Alguém assim me representa no ministério e espero que a presidenta o ouça –se o chamou, parece claro que está disposta a ouvir. Espero que logo possamos a tomar um café novamente para que ele me conte de suas ideias à frente da pasta.
***
“Oposição tem de atuar com ideias, sem ódio”
O filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política na USP (Universidade de São Paulo), declarou voto em Dilma Rousseff por achar que o PT conduz melhor as políticas sociais. Mas está preocupado. Acha que a presidenta terá que mudar seu modo de governar se quiser fazer um segundo mandato melhor que o primeiro: ser menos centralizadora, delegar mais poder e não inibir os ministros e colaboradores. “Se dentro dela houver uma disposição maior ao diálogo, será muito bom”, aconselha Janine. Ele falou a CartaCapital em sua casa, em São Paulo.
CartaCapital – A eleição de Dilma surpreendeu o senhor?
Renato Janine RibeiroEra imprevisível o que ia acontecer porque nunca tivemos uma eleição tão parecida com um thriller, um romance policial. Inclusive a morte de Eduardo Campos é destas histórias que se você colocasse num romance ia parecer apelação. Em um ano e meio, uma presidenta passa de 60% de aprovação, uma reeleição tranquilíssima, garantida, para um desgaste, e depois quando surgiu Marina, a chance forte de perder… Desde a morte de Eduardo, quem fosse apostar, ia apostar pelo menos 50% na chance de ela perder. Foi um trabalho muito grande para conseguir ganhar.
CC – De onde vem esse desgaste?
RJR Basicamente de dois pontos: de um lado, da campanha de desconstrução dela e do PT que tem pelo menos três anos. O primeiro ano do governo dela teve uma espécie de lua-de-mel. A mídia e a oposição estavam festejando o fato de que ela demitia os ministros suspeitos ou acusados e então isso trouxe, sobretudo com o contraste de uma certa tolerância do governo Lula, uam popularidade da Dilma nos setores reticentes ao PT. Essa popularidade não necessariamente iria se traduzir em votos. Duvido que essas pessoas fossem votar nela. Mas a partir do segundo ano de mandato foi um ataque ininterrupto, inclusive com um descolamento entre o que era dito e o que era entendido. Nunca li nenhum artigo, ninguém que acusasse Dilma de algum ato de corrupção. Os atos de corrupção sempre foram colocados na conta de outras pessoas, não há uma única acusação a ela. Mas na opinião pública de oposição colou a ideia de que ela e o partido eram corruptos. Então houve de um lado esse trabalho de desconstrução que culmina com a edição da Veja a poucas horas do pleito, com farta distribuição, propaganda no rádio e TV, recusa de publicar direito de resposta concedido pelo TSE… E, do outro lado, as falhas do próprio governo. Talvez a principal seja a dificuldade da presidenta de lidar com a política, a dificuldade dela de negociar. Um dos significados da política é que você não dá ordens, você ouve, escuta e tenta construir a mais ampla base possível. E ela não dialogou especificamente com três setores: primeiro, os empresários. Muitos se queixaram por um longo tempo não tanto do PT, não tinha uma queixa ideológica, até porque muitos gostavam de Lula, mas havia uma queixa de falta de comunicação, de que Dilma não os recebia, não dava sinais claros para onde ia a economia, e eles não sabiam como fazer suas escolhas. Apesar de os empresários terem um poder de fogo porque têm o capital, numa sociedade capitalista não há como não ouvi-los. O segundo ponto foi o pouco diálogo com os políticos, mesmo. Eles também foram pouco recebidos, pouco levados em conta. Mas o mais grave, a meu ver, do ponto de vista de um partido como o PT, é a falta de comunicação com o povo. Isso não tem nada a ver com técnica de comunicação, com o marqueteiro. E aí está outro erro: ter pensado que isso era uma coisa de marketing, então tinha que contratar o João Santana e aí resolve isso. Não. A questão de comunicação com o povo, para o PSDB, pode ser uma questão de técnica. Para o PT é uma questão de essência, de cerne. Se ele não se comunica com o povo, como é dos trabalhadores? E, no entanto, ela não se comunicou com eles. Ela parece gostar da política mais do lado poder do que do lado diálogo, discussão, escuta e tentativa de dar uma orientação. E isso faz um contraste muito grande com os dois últimos presidentes. Fernando Henrique não se metia na gestão, não devia entender de gestão, mas conseguiu vender o peixe da estabilização monetária e mesmo o das privatizações, um peixe indigesto, e conseguiu convencer que isso era bom. Teve uma excelente comunicação com a classe média. E Lula, que é um comunicador ainda melhor, conseguiu se comunicar com pessoas mais pobres, com muito mais gente que o Fernando Henrique. O problema da Dilma é que não fez nenhuma das duas coisas.
CC – Dilma tem condições de rever essa postura e fazer um segundo mandato melhor que o primeiro, como aconteceu com Lula?
RJRPrecisar, ela precisa. Tinha que fazer ontem. Se ela vai querer e vai conseguir é outra história. Embora eu nunca a tenha visto pessoalmente, o que a gente ouve é dessa dificuldade de diálogo, essa tendência mais a dar ordens do que a escutar. É muito difícil mudar as pessoas. Tanto é que o segredo do Duda Mendonça para tornar o Lula popular não foi inventar um Lula novo, foi tirar a casca grossa do sujeito reclamão, cara fechada, e mostrar o lado alegre, feliz, bem-humorado. No caso da Dilma, será que ela consegue fazer isso sem ser forçado? O melhor momento de fala dela até hoje foi na discussão com o senador Agripino, quando ele a questionou de ter mentido sobre a tortura. Parece que quando ela fala de coração, sem seguir nenhum script, vai melhor. E nos debates ela tem script, foi treinada, recebeu um media training e isso não funciona muito bem com ela. Se dentro dela houver uma disposição maior ao diálogo e ela conseguir utilizar isso, será muito bom. Sem isso vai ser muito difícil o segundo mandato. Ela precisaria fazer concessões à direita e à esquerda. À esquerda tem toda uma agenda, pelo menos de costumes, ao qual ela não deu muita importância. Tem uma área, no que diz respeito aos Direitos Humanos e ao Meio Ambiente, que é muito deficiente. Cedeu aos setores mais conservadores e na hora do voto foi o pessoal dos Direitos Humanos que foi apoiá-la, enquanto os homófobos haviam ido em sua maioria para Aécio. Então vai ter que abrir por esse lado. Na agenda econômica, tem que fazer sinais para a direita, ou para o capital. O capital não necessariamente vai assumir as bandeiras da direita, mas o capital é por natureza conservador. Como vai conseguir negociar com todas essas pessoas se ela primou, até agora, por não negociar? 
CC – A presidenta centraliza demais?
RJR Tudo que a gente lê é que ela é muito centralizadora, delega muito pouco, inibe os ministros, os colaboradores, desautoriza de público… Isso inibe a criatividade. Um caso que sempre lembro: Haddad, quando era ministro da Educação de Lula, foi acordado de madrugada com a notícia de que haviam roubado as provas do Enem. E teve que tomar uma decisão super-rápido. Imagina ter que ligar para o Lula às 3 da manhã para pedir autorização para cancelar o Enem? Ou se cancelasse e duas horas depois o presidente mandasse fazer? Esse tipo de risco um ministro não pode correr. Outra coisa: você tem um ministério de pouco brilho. Um ministro que foi brilhante no governo Lula, Celso Amorim, nas Relações Exteriores, ninguém acompanha o que ele faz na Defesa. Gilberto Carvalho, Marco Aurélio Garcia… Estão apagados agora. Mesmo um ministro de maior projeção, como o Mercadante, você não ouve sobre iniciativas dele.
CC – A alegada divisão no Brasil sempre existiu, foi incentivada pelo PT ou pela mídia?
RJRExiste um clima alimentado por alguns veículos, sobretudo uma revista, que é um clima de ódio. Mas acho que pelo menos 50% das pessoas não dão muita importância à política. Dos 30% a 40% que dão, uma parte está muito antagônica à outra. Mas vejo essa revolta, essa intolerância, mais no eleitorado tucano. Isso não quer dizer que os 48% que votaram em Aécio são intolerantes, um terço, talvez. E um número menor ainda fala em impeachment. Mas ficou uma divisão que não é geográfica, é uma divisão entre os que se sentem beneficiados pelas políticas sociais do governo petista e os que ou se sentem prejudicados ou têm preconceito contra as pessoas que foram subindo na vida. Havia uma expressão horrorosa nos anos 1960 quando houve os conflitos raciais nos EUA: “no Brasil não temos isso porque os negros conhecem seu lugar”. A ideia de que o pobre sabe qual é “o lugar do pobre” sempre foi forte no Brasil.
CC – E como fica a oposição?
RJRA grande questão é se os tucanos vão conseguir fazer uma oposição para além do ódio. O que estou vendo é que o PSDB falhou em ser um grande partido liberal, dos empreendedores, e acabou se tornando o partido do grande capital. O grande problema do PSDB é não ter uma proposta, então acaba precisando dos votos do ódio. Isso justifica a proximidade com os blogueiros do ódio. Certamente o PSDB não os chamaria para nenhum cargo importante, mas iriam ter um espaço na máquina de propaganda. O problema disso é que o PSDB acaba tendo uma parte do eleitorado que é pior do que sua liderança, o que me parece um gigantesco erro político.