terça-feira, 14 de junho de 2011

Etimologia: sobre o artigo "Omens sem H", de Nuno Pacheco, jornalista lusitano


Omens sem H

Por Nuno Pacheco

Em Público

Espantam-se? Não se espantem. Lá chegaremos. No Brasil, pelo menos, já se escreve "umidade". Para facilitar? Não parece. A Bahia, felizmente, mantém orgulhosa o seu H (sem o qual seria uma baía qualquer), Itamar Assumpção ainda não perdeu o P e até Adriana Calcanhotto duplicou o T do nome porque fica bonito e porque sim.

Isto de tirar e pôr letras não é bem como fazer lego, embora pareça. Há uma poética na grafia que pode estragar-se com demasiadas lavagens a seco. Por exemplo: no Brasil há dois diários que ostentam no título esta antiguidade: Jornal do Commercio. Com duplo M, como o genial Drummond. Datam ambos dos anos 1820 e não actualizaram o nome até hoje. Comércio vem do latim commercium e na primeira vaga simplificadora perdeu, como se sabe, um M. Nivelando por baixo, temendo talvez que o povo ignaro não conseguisse nunca escrever como a minoria culta, a língua portuguesa foi perdendo parte das suas raízes latinas. Outras línguas, obviamente atrasadas, viraram a cara à modernização. É por isso que, hoje em dia, idiomas tão medievais quanto o inglês ou o francês consagram pharmacy e pharmacie (do grego pharmakeia e do latim pharmacïa) em lugar de farmácia; ou commerce em vez de comércio. O português tem andado, assim, satisfeito, a "limpar" acentos e consoantes espúrias. Até à lavagem de 1990, a mais recente, que permite até ao mais analfabeto dos analfabetos escrever sem nenhum medo de errar. Até porque, felicidade suprema, pode errar que ninguém nota. "É positivo para as crianças", diz o iluminado Bechara, uma das inteligências que empunha, feliz, o facho do Acordo Ortográfico.

É verdade, as crianças, como ninguém se lembrou delas? O que passarão as pobres crianças inglesas, francesas, holandesas, alemãs, italianas, espanholas, em países onde há tantas consoantes duplas, tremas e hífens? A escrever summer, bibliographie,tappezzería, damnificar, mitteleuropäischen? Já viram o que é ter de escrever Abschnitt für sonnenschirme nas praias em vez de "zona de chapéus de sol"? Por isso é que nesses países com línguas tão complicadas (já para não falar na China, no Japão ou nas Arábias, valha-nos Deus) as crianças sofrem tanto para escrever nas línguas maternas. Portugal, lavador-mor de grafias antigas, dá agora primazia à fonética, pois, disse-o um dia outra das inteligências pró-Acordo, "a oralidade precede a escrita". Se é assim, tirem o H a homem ou a humanidade que não faz falta nenhuma. E escrevam Oliúde quando falarem de cinema. A etimologia foi uma invenção de loucos, tornemo-nos compulsivamente fonéticos.

Mas há mais: sabem que acabou o café-da-manhã? Agora é café da manhã. Pois é, as palavras compostas por justaposição (com hífens) são outro estorvo. Por isso os "acordistas" advogam cor de rosa (sem hífens) em vez de cor-de-rosa. Mas não pensaram, ó míseros, que há rosas de várias cores? Vermelhas? Amarelas? Brancas? Até cu-de-judas deixou, para eles, de ser lugar remoto para ser o cu do próprio Judas, com caixa alta, assim mesmo. Só omens sem H podem ter inventado isto, é garantido.
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Sobre o artigo de Nuno Pacheco

Vamos nos basear no pressuposto da "oralidade que precede a escrita". Facilitar a escrita é priorizar a oralidade, com o risco de se perder o sentido original das palavras?

É uma dúvida que sempre carreguei.

Para levar esse argumento adiante deve-se considerar que a forma de pensamento de um povo se dá ao redor e por meio do idioma. O idioma é, ao mesmo tempo, resultado e instrumento da forma de pensar e agir - a idiossincrasia - de uma sociedade.
A Humanidade e sua cultura como a conhecemos vem do tempo em que não havia escrita, onde a captura do sentido da palavra e da ideia como um todo era muito mais importante, simplesmente porque não havia textos para se apoiar e fixar o aprendizado, o conceito, a ideia. O momento de ouvir durante o aprendizado era crucial. Ao se falar, produzia-se um momento que não se repetiria e que a ação de ouvir era essencial. Muitos textos sagrados como a Bíblia e o Mahabharata (enorme compêndio sagrado da Índia do tamanho da Enciclopédia Britânica) são conhecidos até hoje porque havia pessoas que decoravam textos inteiros. Técnicas e conhecimentos de todo tipo, de construção a artefatos, da medicina, éticos e filosóficos e que são as bases de valores da sociedade moderna eram captados pela então única mídia (meio) existente - a memória. Com a escrita, perdemos parte dessa capacidade, porque o momento de se falar pode ser reproduzido por uma 'mídia', a princípio impressa (na rocha, parede, pedra, papiro, papel, cera, cerâmica, disco de vinil, fita magnética, disco óptico, superfície magnética (hd, pendrive, etc.), ou qualquer outra que o valha... O curioso é que a oralidade foi resgatada, mas não o sentido crucial do momento de ouvir.
E, após séculos de convívio com outras mídias e, por sua vez com o idioma escrito, algumas sociedades convivem com o dilema e, pelo ponto de vista do repórter lusitano, para o idioma português não há dúvida: a oralidade precede a escrita?
Há muitos exemplos de palavras que perderam seu sentido original, e a explicação pode estar na troca da oralidade antigamente praticada pela palavra escrita e, por consequência pelo movimento circulatório mídia/sociedade sem cultura-educação/mídia e pela velocidade que esse movimento impõe ao sentido das palavras. Exemplos de substantivos concretos como 'farmácia' em vez de 'pharmacia' torna a escrita mais prática e evita duas formas de se escrever o mesmo som, problema esse do qual a língua portuguesa não tem se livrado com a mesma simplicidade que o idioma espanhol. Mas principalmente no caso de substantivos e adjetivos abstratos, o efeito da velocidade do movimento mída/sociedade sem cultura-educação/mídia pode tomar proporções com resultados inclusive, sobre a ética e o comportamento. No pêndulo desse dilema é que se arrisca dizer porque o inglês e o francês (e muitos outros idiomas ) manteem a tradição da escrita originada do latim, do anglo-saxão e de outras influências, para que não se perca o sentido original do conceito contido nas palavras.
Vou citar um exemplo, que não ameaça a sociedade, muito menos acaba com o idioma português tão só porque perdeu seu sentido original, mas evidencia esse movimento: vê-se na TV o uso na palavra insólito para designar um lugar desabitado, vazio (local insólito). Mas insólito significa extraordinário, inabitual. Por sua vez, usa-se também o termo inóspito, com a mesma designação, isto é desabitado, vazio. Mas, na verdade, o sentido real de 'inóspito' é o de ser não hospitaleiro (no caso, não hospitaleiro à habitação humana, porque talvez o clima seja muito frio, ou não há água, etc.) e, por isso, inapropriado para os humanos e talvez animais. Enquanto 'insólito', perde o seu sentido original, "inóspito" adquire o significado de desabitado quando o real sentido é um lugar inapropriado para se estar ou viver (e, por isso, está desabitado). Mas essas aplicações errôneas desses termos na TV (onde a velocidade mídia/sociedade sem cultura/mídia é maior que a dos escritores e poetas, que detinham o poder do significado das palavras e mantinham o leme sobre o idioma) fazem-nos cada vez mais a utilizar no dia-a-dia os termos de forma diversa ao seu sentido original. Mas, como dizem os especialistas em idioma o essencial no idioma é a comunicação e a língua é viva e dinâmica porque segue os movimentos da sociedade. Disso resulta que pessoas que teem o poder da mídia mas não dominam o idioma, impõem sentidos diversos a palavras a uma sociedade iletrada que aceita o 'novo' significado dos termos e que com o tempo, a exemplo de "insólito" e "inóspito" as palavras perderão seus sentidos aos quais foram criadas
No livro '1984' de George Orwell isso é abordado de maneira irônica, estranha e perversa: o poder estatal que controla a mídia usa as palavras que possuem valores como 'liberdade', 'individualismo', 'felicidade', 'iniciativa' de forma diversa e difusa, martelando esses pseudo-sentidos diariamente na sociedade, até que as palavras percam seu sentido original. Claro, com o objetivo de manipular a sociedade e manter o poder absoluto sobre ela.
Veja o caso do termo 'desobediência civil', citado por Thoreau em sua obra. Leia em http://thoreau.eserver.org/spanishcivil.html, ou ainda em português em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2249

Ao tratar desse tema em roda de amigos que se interessem minimamente, você será encarado como 'petista', 'comunista comedor de criancinha'. Mas esse pensamento norteia a democracia americana, a mais libertal democracia do planeta, assim como está presente na Constituição Americana e é um dos pilares da Justiça por lá aplicada.
Daí se conclui como a sociedade brasileira, inculta e, por isso, gado a serviço de poucos, está doente. E de como o idioma pode ser manipulado e usado contra essa própria sociedade. Repito que é isso que leva outros idiomas a não simplificar a sua escrita, com risco de se perder o sentido original das palavras. Orwell tinha razão. O repórter do texto que você me enviou tem parte de razão e justamente da parte menos importante.