Tales Ab’Saber: “Impeachment artificial faz Brasil abrir fraturas expostas a cada dia”
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(...) Contudo, a partir de quarta-feira com os grampos feitos e divulgados
pela imprensa, ficou claro que o Moro, que até então tinha uma posição
centrada na técnica e legitimidade do poder judiciário, fez ações
claramente políticas. Ele ultrapassou limites de legalidade, segundo
vários juristas. O juiz que vinha garantindo a estrutura legal e
institucional, agora ultrapassou uma fronteira perigosa."
Uma coisa chamou a atenção de Tales Ab’Saber nas últimas semanas: o fato de que seu livro
Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica,
publicado em 2010, já será relançado pela editora Hedra. A surpresa vem
do fato de que apesar de passados apenas cinco anos, um contraponto
histórico já se faz necessário: o Brasil passa por um momento tão turbulento que a sociedade perdeu um pouco da real dimensão do patamar em que o país se encontra.
O livro é uma forma de reencontrar o Brasil de 2010 e analisar as fraquezas e virtudes da
persona política do ex-presidente que hoje é alvo da Operação Lava Jato e dos protestos que foram às ruas no domingo
(13). Psicanalista, Ab’Saber é professor da Unifesp e procura estudar a
política de perspectivas diferentes. Para ele, uma das questões
fundamentais deixadas de lado por analistas é o papel da personalidade
na vida política. Em entrevista ao EL PAÍS, ele usa essas ferramentas
para analisar o atual momento e seus principais atores.
"Existe uma crise de imaturidade da democracia e que todos os agentes
estão testando suas forças, mas uma democracia complexa só se completa
quando o judiciário entra em cena"
Pergunta. O processo de impeachment esfriou no final
do ano passado, mas o cenário mudou radicalmente nas últimas semanas.
Como você avalia o momento?
Resposta. É um momento em que, mais uma vez, tudo está em aberto. O ano terminou bem para o Governo, com vitórias no STF
e defesa nas ruas, mas está claro que tudo mudou novamente. Agora o
Governo está mais fraco do que nunca e existem todas as condições para
que ele seja derrubado no Congresso. Agora, é preciso dizer que esse
processo de impeachment
é muito estranho. Ele se renova todos os dias. É só reparar que ninguém
sabe ao certo o que se alega. É um processo temporal e artificial. É
claro, ele tem apoio de setores da sociedade, mas está sendo tocado por
outros interesses. Isso faz com que o Brasil viva abrindo uma fratura
exposta a cada dia. O Governo não pode governar e esse é um dos caminhos
pelo qual parte da oposição tem trabalhado pelo impeachment. Se você
impede o Governo de governar, você trava tudo, enfraquece. É algo
irresponsável e tem custado muito caro para o país. Vou pegar um exemplo
simples: a oposição votou contra princípios que ela própria sustenta ao
longo de 2015. Isso é o jogo perverso da política e deslegitima as
posições da oposição, aprofunda a crise. Mas, como eu disse, a situação
está muito delicada para o Governo. A última alternativa do Governo
agora é tentar jogar e ganhar no jogo da política, mas nisso ele já
provou que vai muito mal.
P. Trazer o ex-presidente Lula para o ministério é uma forma de tentar jogar esse jogo de forma mais hábil?
R. Certamente o Lula é muito mais hábil do que a
Dilma, mas essa situação de ele ser ministro é muito excêntrica. Não há
garantias que isso dê certo. Ele não concorda com o Governo dela em
certos aspectos e tem feito um discurso de oposição ao Governo. Como vai
ficar agora? É tudo muito clivado, mas é importante dizer que não há
nada ilegal nisso. A presidenta tem direito de colocar o Ministro que
quiser. Essa discussão e esse movimento de tentar impedir que ele assuma
são ilegais. Essas pessoas e juízes estão querendo intervir no processo
da política com leis que não existem. Eles podem criticar moralmente,
ir para a rua, votar, mas não intervir nos direitos da presidência. O
escândalo estratégico e furioso que a oposição produziu nas ruas com a
posse do Lula, envolvendo a ação desses juízes, tem como único objetivo
desestabilizar e deslegitimar a ação política do ex-presidente. Isso
tudo foi feito para não deixar o Lula agir, para tirar a única força do
Governo.
P. Você falou da habilidade de Lula para a política e tem dois livros tratando das personalidades dele e da presidenta Dilma (
Dilma Rousseff e o ódio político, também da editora Hedra). Como está analisando as ações deles nesse momento?
R. O Lula é uma figura extremamente complexa. Ele
foi descobrindo com o passar dos anos o poder da sua sedução natural, o
poder do seu sistema de linguagem. O meu estudo é sobre as funções da
personalidade nas ações políticas. Em uma democracia complexa como a
nossa, isso conta muito. O caso de Lula e Dilma, por exemplo, são
completamente opostos. A habilidade que ele tem em tecer acordos, em
seduzir, em atrair forças populares é tudo que ela não tem. Foi depois
do Mensalão,
em que o PT sofreu um baque muito forte, que Lula se viu sozinho e
assumiu, de vez, essa consciência de seus poderes carismáticos. Assim, o
discurso que ele fez depois do depoimento que deu para a Polícia
Federal foi extremamente calculado. Ali está o afeto, o brasileiro
sensível e cordial que demanda ser compreendido pelo outro exatamente
porque é capaz de compreendê-lo. É um discurso baseado em um jogo de
sentidos muito complexo.
P. Você acredita que ele está sendo irresponsável ao fazer isso? Acirrando ainda mais os ânimos?
R. Não. Isso é a regra do jogo. São habilidades que
ele pode usar. Há que se reconhecer também que até agora o Lula teve um
senso muito preciso das instituições e da democracia. Em nenhum momento,
por exemplo, ele sinalizou que tentaria um terceiro mandato. Há que se
dar o crédito a ele. Ele foi pouco democrático ao lançar uma sucessora?
Não. É do jogo.
P. E a personalidade da Dilma?
R. Como disse, é oposta. Ela tem imensa dificuldade
em operar os outros e as forças que a cercam. Em ser clara. Em agregar
forças. Nesse sentido ela é uma má política. E é nisso que a oposição
bate. Ela deve ser afastada, porque ela é um problema para o Brasil. Só
que isso é ilegítimo. Ela foi eleita. Agora deveriam suportar o tempo
que a lei a faculta para governar.
P. Nesse momento de acirramento de ânimos, há quem fale em um processo de “venezuelização” do Brasil. Como você avalia a situação?
R. Antes de qualquer avaliação é importante dizer
que a questão da ideologização é algo mundial atualmente. Vem dos
setores à direita da sociedade e está acontecendo nos EUA, na Europa e
no Brasil. Em diferentes chaves, claro, mas de forma semelhante. É um
resultado de segundo tempo das manifestações do tipo
occupy,
que foram direcionadas ao sistema financeiro mundial. No momento, o que
está acontecendo é que posições de direita e extrema-direita começam a
ganhar força por causa das mesmas contradições dessa ordem econômica
global. O problema dos imigrantes na Europa, por exemplo, facilita esse discurso de direita. Nos EUA, a figura é o Trump,
que projeta uma dinâmica paranoica no país. O que se vê é que em todos
esses lugares o caminho do meio da sociedade e da política tem
dificuldade de responder à crise econômica mundial e perde espaço para
discursos extremados.
P. E como o Brasil aparece aí?
R. A crise de 1929 acabou gerando os fascismos das
décadas seguintes. Não estou dizendo que há horizonte para algo
semelhante agora, mas é fato que estão surgindo posições extremadas e
autoritárias, inclusive dentro do Congresso. O que acontece agora aqui é
que há alguns discursos contrários ao Governo. Um deles, mais
autoritário, não foi capaz de compreender o sucesso capitalista dos 8
anos de Governo Lula. Não foi capaz de ver que as coisas não se
resumiram a uma festa ideológica. Essas pessoas nunca entenderam que o
processo brasileiro não foi sequer semelhante ao venezuelano,
por exemplo. Por isso, há uma tentativa clara e uma voz delirantes na
rua que tenta voltar a um discurso anterior ao desenvolvimento lulista,
de que ele representa o atraso e um perigo. Isso não é verdade, não se
confirmou historicamente. Aí a gente vê a resistência da ideologia. O
processo histórico avançou, as coisas mudaram, mas a ideologia resiste.
Essa é a parte que deixa o debate surdo, sugerir que o PT é comunista é
uma alucinação. Parte da oposição à direita, contudo, tem se aproveitado
disso. Tratar uma democracia complexa como a nossa em termos de Guerra
Fria? Não tem cabimento. E é um problema porque impede que as pessoas
entendam a situação real em que o Brasil se encontra.
P. Onde está o Brasil nesse momento?
R. Em termos macro institucionais, a grande novidade
é a forte entrada em cena, algo revolucionária, do Judiciário no jogo
político brasileiro. Existem duas avaliações sobre isso. Uma é que esse
novo papel da Justiça está alinhado com a centro direita e que é um
processo eleitoral. Outra é que esse processo é de autonomia e está
estabelecendo um novo patamar e novos critérios de funcionamento da
justiça brasileira. Eu sempre acreditei que a Operação Lava Jato estava
indo em um caminho bom, porque colocou na cadeia algumas das maiores fortunas do país
ajudando a quebrar o pacto Capital e Estado que sempre existiu.
Contudo, a partir de quarta-feira com os grampos feitos e divulgados
pela imprensa, ficou claro que o Moro, que até então tinha uma posição
centrada na técnica e legitimidade do poder judiciário, fez ações
claramente políticas. Ele ultrapassou limites de legalidade, segundo
vários juristas. O juiz que vinha garantindo a estrutura legal e
institucional, agora ultrapassou uma fronteira perigosa.
P. E qual é o perigo disso nesse momento?
R. Em primeiro lugar, vamos lembrar que
o Brasil é aquele país em que o Maluf é condenado na França, mas não é condenado aqui.
É fato que o judiciário nunca quis saber da corrupção, mas quando ele
entra em cena, o choque é inevitável e a desorganização do sistema
político também. Só que você não pode derrubar um Governo, uma
presidenta, por cima de atos ilegais, dizendo apenas que o inimigo
político cometeu ilegalidades. É preciso prová-las. Fora das provas,
ficamos no plano da força. A função do juiz e das instituições é não
permitir que isso aconteça. É regular uma medida legal, constituída e
prévia que impeça que a força pura impere na política. Ao fazer o que
fez, Moro ficou na fronteira de deslegitimar todo o seu processo. O que
vai acontecer daqui para frente, só esperando as próximas semanas. O
fato é que agora ele está se sentindo forte, porque tem apoio popular,
mas até quando? Aécio também tinha e não tem mais, foi vaiado. Agora, eu
digo que a Lava Jato tem sido interessante em muitos pontos, o
principal é o de desmontar uma estrutura de corrupção arraigada no
Brasil. No momento que ela vira partidário é que o problema.
P. Na sua avaliação, a Operação Lava Jato tem uma base interessante para o Brasil?
R. Considerando e acreditando que eles não estão aí
apenas para jogar lenha na fogueira antigovernista, sim. Mas tem coisas
que precisam ser questionadas. Além dos grampos, o caso do Lula no
processo é estranho. Às vezes parece até pessoal. Eu não sei dizer como
especialista o que se tem, de fato, contra ele.
Mas a questão toda é qual é o papel desse ex-presidente no jogo de
interesses do Estado. Isso está sob investigação e o juiz terá uma
conclusão ao final. Contudo, eu fico com a impressão de que um
apartamento no Guarujá e um Sítio em Atibaia é muito pouca coisa perto
do que o processo de riqueza e práticas corruptas brasileiras tem gerado
historicamente no Brasil. Essas duas propriedades são muito pequenas
perto de fazendas e apartamentos em Paris, por exemplo. E eu posso dar
um exemplo concreto. Há muito interesse em se saber como o Instituto
Lula é sustentado, mas nenhum interesse em saber como se sustenta o
Instituto Fernando Henrique Cardoso.
O dinheiro que os criou vem do mesmo lugar. Apesar disso tudo,
o que
resta entender é que o PT está numa crise que eles próprios não
realizaram. É uma crise que tem a ver com a tradição corrupta da
política brasileira, com a qual o PT conviveu e não deu uma resposta.
P. Ao que você está se referindo?
R. O problema do PT
não é a crise econômica, a desordem internacional ou sequer o fato de o
partido ter participado do processo político brasileiro com os seus
históricos e anteriores mecanismos de corrupção interna. O problema é
ter feito parte disso e não ter politizado o problema, não ter buscado
uma solução, não ter proposto reformas. Agora, eles acreditam que a
resposta que eles não deram, quando era tempo, vão conseguir dar com
anteparo da figura mítica e carismática do Lula.
Acredito que esse tempo passou. O processo histórico vai engolir Lula e
PT. Essa é a falência política do PT: não ter tirado dessa crise uma
solução para a corrupção brasileira. Isso era o que se esperava. Agora,
eles não conseguem responder esse enigma e vão pagar politicamente por
isso. A grande instabilidade que está colocada é a própria fraqueza do
campo da esquerda. A direita é simplesmente oportunista e transformou
essa instabilidade em uma luta pelo poder.
Obtido de:
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/12/politica/1457741166_830656.htm
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