"Quando você vai comprar algo, não paga com dinheiro, paga com o tempo de sua vida que teve que gastar para ter esse dinheiro." José Mujica
Após vinte e cinco minutos de viagem até a periferia de Montevidéu,
uma pequena rua de terra se revela e corrobora o mito da simplicidade
de seu morador mais ilustre. Manuela corre como se tivesse quatro patas,
ignorando que uma é inválida. Na frente de um galpão, abastecido com
material de construção, há dois grupos.
O primeiro se forma em torno do cineasta sérvio Emir
Kusturica. Ele grava um documentário sobre a vida de nosso anfitrião,
que se chamará O último herói. O diretor, arredio, reconhecido e premiado em todo mundo, parece um anônimo caminhando pela chácara, sem ser incomodado.
Já o segundo grupo está animado, são funcionários do ex-guerrilheiro
de um dos mais importantes movimentos da história da América Latina, o
Tupamaros. Um dos homens se afasta da reunião e anuncia: “O presidente
já vai receber vocês”.
Ele atrasa vinte minutos em relação ao horário marcado, estava
ajudando na obra da escola agrária que será erguida em seu terreno.
Vestindo uma calça de agasalho da seleção uruguaia e uma chuteira de
futebol de salão, nos convida para sentar na frente de sua casa.
Nos sentamos em um banco feito por internos de um hospital
psiquiátrico de Montevidéu, todo ele ornado com tampas de garrafas de
refrigerante. O mesmo assento e espaço foi ocupado três dias antes, sob
as mesmas condições, pelo rei da Espanha, Juan Carlos, que passou a
tarde com o ex-presidente.
No fundo da casa, a última das lendas se confirma. Está lá
o automóvel azul, um dos poucos patrimônios do ex-mandatário uruguaio,
seu Fusca. Ele defende a propriedade. “Por que eu vou querer andar mais
rápido que 80 km/h? É um perigo. Não há impostos [do carro]. Por que andar mais rápido? Se vou morrer do mesmo jeito, que pressa eu tenho?”
José Alberto Mujica presidiu o Uruguai de 2010 até o
último dia 1º de março. Dois dias depois foi empossado como senador. Aos
79 anos, caminha com a tranquilidade de quem saiu do governo com 65% de
aprovação e trouxe a mídia do mundo inteiro para dentro do país.
Pelas ruas do Uruguai, já
é tratado como um mito.
“Ele é maior que o Papa”, diz um entusiasmada garçonete. Para uma
jornalista, “toda utopia se torna verdade na boca de Mujica”. Na posse
de seu sucessor na presidência uruguaia, Tabaré Vázquez, bandeiras da
Colômbia,
Argentina
e Brasil com os mesmos pedidos, que Mujica “assuma” os países
vizinhos. “Estou aqui porque ele nos inspira a querer ter uma vida mais
humana, combatendo o capitalismo e ajudando os mais pobres”, afirma a
mulher que carrega a bandeira do Chile.
Em entrevista exclusiva à Fórum, Mujica
dispara contra o consumismo e mostra como se tornou um dos grandes
oradores contemporâneos, com discursos que arrebatam a juventude pelo
mundo.
“Quando você vai comprar algo, não paga com dinheiro, paga
com o tempo de sua vida que teve que gastar para ter esse dinheiro.
Todavia, se tem muito dinheiro, tem que gastar tempo em controlá-lo e [cuidar para]
que não te roubem. E, ao final, és um pobre escravo que já não tem
tempo para viver”, filosofa o ex-guerrilheiro, que se casou com uma
companheira de luta, hoje senadora pelo Uruguai e favorita às eleições
municipais de Montevidéu, Lucía Topolansky.
Mujica, que ficou preso por 14 anos durante a ditadura
militar uruguaia, empreendeu durante seu governo mudanças profundas no
sistema do país. O agora senador conduziu o Uruguai para a esquerda e
tornou possível a concretização de pautas históricas relacionadas a
direitos civis, como a despenalização do aborto, a regulamentação da
produção e venda da maconha, a
Lei de Meios e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
“Reconhecemos o matrimônio igualitário porque acontece em
todo mundo e é estúpido não reconhecê-lo. Tratamos de combater o
narcotráfico pela via da regulamentação do mercado, não que estejamos de
acordo com o consumo de droga. Porém, pior que a maconha, é o
narcotráfico... Esse critério, tratamos de abrigar em todas as
políticas, reconhecer a realidade, por mais que não te agrade, porque
reconhecê-la é tratar de retirar os efeitos negativos que aquela
realidade pode ter. Olhe, isso nem é de esquerda, isso deveria ser o
senso comum”, afirma Mujica.
Confira, na íntegra, a entrevista com o líder político uruguaio, que faz parte do "
Bora para o Uruguai", projeto que viabilizou a viagem de
Fórum ao país com o apoio de leitores da publicação.
Ouvimos de uma jornalista, aqui em Montevidéu, que
“o que é utópico, na boca de Mujica, parece ser verdade”. O que é a
utopia para você?A utopia é um caminho. É como uma
luz no horizonte que nos ajuda a percorrer esse caminho, e eu diria: que
caminho longo... Porém, é um caminho a ser feito. Não podemos esquecer
dela, mas a vida concreta não é utopia, é luta. Não devemos substituir a
luta tendo como consolo ser fiel à utopia, porque, senão, terminamos
sendo charlatões.
Qual é o papel de Lucía Topolansky em sua vida, como companheira e como personagem política no Uruguai?O
que acontece é que o amor tem idade nos seres humanos. Quando se é
jovem, é possível que seja uma paixão, quando se está envolvido na luta e
ela é muito dramática, o amor também é um refúgio. Na minha idade, o
amor é uma luta cotidiana. É difícil viver sozinho. Mas minha
companheira também é militante e também está comprometida [com a política],
pois, ao contrário haveria dificuldades. É difícil uma vida de um
militante se a outra pessoa que compõe sua vida não o acompanha ou não
tem compromissos sociais.
No mundo inteiro há uma crise de
representatividade de figuras e partidos políticos, mas isso não ocorre
com a sua figura, que as pessoas querem tão bem. Por que acha que isso
acontece?Acho que uma explicação simples é que a
república apareceu no mundo para negar o direito divino da monarquia e o
direito de sangue da nobreza. A república veio para dizer que,
basicamente, todos os homens são iguais. E que, como tal, temos as
mesmas possibilidades e os mesmos direitos.
Porém, dentro da república, se repetem algumas ações que
são de outra época. Então, a presidência tende a se assemelhar um
pouquinho à monarquia: tem o tapete vermelho, tem uma corte, tem um
mecanismo que a cerca. E isso é um incentivo para o presidente e a alta
hierarquia do Estado viverem – sem se dar conta – de forma diferente de
como vive a maioria daqueles que eles lideram. Desta forma, cria-se uma
distância. Começam a viver como a minoria, como a minoria privilegiada. E
essa distância, no modo de viver, nos costumes e das relações, o povo
as nota, o povo as percebe quase que subjetivamente. Começa o descrédito
e o “não acreditar” [nas instituições políticas]. Isso é muito perigoso, porque o homem é um animal utópico. No DNA do homem, está inscrita a necessidade de acreditar em algo.
Por que lhes digo isso? Em todas as cidades, em todas as
épocas, em algum momento, os homens inventaram alguma religião para crer
– e não há utopia maior que a religião. Isso você vai encontrar em
todos as partes do mundo e em todas as épocas. Na sociedade moderna,
quando as pessoas começam a ser pressionadas pelo mercado e não creem
naqueles que as governam, não querem outra coisa a não ser o refúgio
individual, com cada um pensando em si próprio e os demais não
importando. E esse é o trunfo do egoísmo: a falta de credibilidade acaba
por acentuar o egoísmo das pessoas. Perde-se o mínimo sentido de
solidariedade e produz-se esse flagelo que é a sociedade moderna, que
possui uma riqueza como nunca antes, e mesmo assim, ainda não tem nada
para compartilhar.
Creio que privilegiamos demais a ideia de que a troca
material determina a mudança do homem e não temos dado o papel devido à
cultura e aos costumes nessa batalha. Até podemos ter um pensamento
socialista ou socializante, porém, seguimos tendo uma cultura de conduta
capitalista, da qual não damos conta. Nesse terreno, a disputa não está
estabelecida, então nos movemos em uma sociedade de mercado e aqueles
que estão contra isso, estão contra apenas do ponto de vista conceitual,
pois suas vidas estão [nesse sistema] como se fosse em uma teia
de aranha. Se você tem filhos, mas seus filhos veem que seus amigos
ganharam brinquedos novos, isso vai te pressionar.
O senhor nos disse agora que "toda pessoa tem que crer em alguma coisa". No que o senhor crê?Eu
creio na vida. E, ao crer na vida, creio na necessidade de gastar a
maior parte de energia possível para favorecer a vida dos demais. Isso é
uma forma utópica de lutar contra a morte. Quero lutar para que os que
ficarem tenham um destino melhor do que nós tivemos. Mas, no fundo,
provavelmente, o que fazemos traz o desejo de deixarmos algo de nós no
destino de nossos irmãos. Quando dizem que eu sou um "presidente pobre",
não sou. Sou sóbrio em minha forma de vida, pobre é quem precisa de
muito. Esse é pobre. Levo minha vida como na definição de Sêneca.
E sobre o culto a sua imagem, o que pensa?Hoje,
na sociedade, tudo tende a ser midiático, pelo menos o que é diferente.
Isso se difunde porque meu comportamento é distinto em relação ao que
fazem os outros, então chama a atenção. Mas isso pode ser muito
perigoso, se alguém passa a levar a sério e acredita que pode tirar
vantagem disso. Na realidade, isso reflete um problema que está
ocorrendo no mundo. Você encontra um tipo raro que se torna presidente,
mas vive como vive a parte maior de seu povo. Isso chama a atenção e se
torna uma doença. O que deveria chamar a atenção é como vivem os outros,
porque isso não é republicano, isso é de sociedade aristocrática.
Acredita que a luta de classe é ainda o estruturante do capitalismo?A
luta de classes é como o sol e como as estrelas. Negá-la é negar a
realidade. As classes sociais estão em toda a parte. Como a encaramos,
tem muito a ver em como se segue um filme, como se segue o
desenvolvimento da vida. Particularmente, creio que na América [Latina] estamos
em uma etapa de liberação. O que significa a "liberação"? Tirar o nosso
povo da pobreza e ter sucesso em uma margem da cultura, conhecimento e
capacitação. Isso não significa superar as classes sociais, significa
preparar o terreno. Não acredito que podemos criar sociedades mais
justas a partir de países pobres e massivamente analfabetos – apesar de
sabermos escrever, o que digo é com uma cultura muito rudimentar. O que
não significa que, se um país for rico e tiver massificado o
conhecimento e a cultura por toda uma juventude, vamos construir uma
sociedade melhor. Não. Precisa-se de outras coisas.
Posso ser mais claro: as tentativas de se construir países
socialistas a partir de países pobres, em minha humilde opinião,
demonstraram que são utópicas e impossíveis – mais que utópicas, são
quiméricas. Mas isso nós não sabíamos, tivemos que tentar. Por isso,
digo que a América Latina está em uma etapa de liberação. Isso significa
que temos que apoiar o ingresso da população, incluindo os setores da
burguesia, pois precisamos de desenvolvimento, necessitamos de meios
materiais. O reforço universitário nós temos que multiplicar por cinco,
por dez. Não devemos trancar a economia. Mas não pensemos que só porque a
economia pode prosperar, teremos uma sociedade melhor. Enquanto
estivermos sendo orientados pelo mercado, estamos perdidos. Pois bem,
fizemos nossa parte. O socialismo em um país pequeno como o Uruguai é
algo mais que quimérico.
E quanto a essa palavra que agora se usa em toda parte: austeridade?Não,
não quero mais usar essa palavra. Sou sóbrio. Porque deixar muitas
pessoas sem trabalho na Europa é ser austero. Não, austeridade eu não
uso mais, porque mata as pessoas de fome, as deixa sem trabalho... Isso
não é austeridade. Isso é outra coisa, é miséria. O que é o conceito de
sobriedade? É consumir o necessário. É andar sem acúmulos. É ter poucas
coisas e não se deixar arrastar pela propaganda de mercado. Para que?
Para tentar ter disponível a maior quantidade de tempo para gastar nas
coisas que ainda me motivam. Se consumo muito, se fico comprando
permanentemente coisas novas, tenho que ganhar muito dinheiro, e para
ganhar esse dinheiro estou pagando com meu tempo de vida. Quando você
vai comprar algo, não paga com dinheiro, paga com o tempo de sua vida
que teve que gastar para ter esse dinheiro.
Ser sóbrio é lutar para aproveitar aquilo que chamamos de
liberdade. Você só é livre quando faz coisas que te agradam e te
motivam. E não são livres quando tem que trabalhar para fazer frente às
necessidades materiais – se você as torna infinitas, é infinito o tempo
que terá que trabalhar. Todavia, se tem muito dinheiro, tem que gastar
tempo em controlá-lo e [cuidar para] que não te roubem. E, ao
final, és um pobre escravo que já não tem tempo para viver. Deve-se
gastar tempo para fazer as coisas que se gosta. Para uns pode ser jogar
futebol, a outros pode ser ir à praia, ou trabalhar com árvores,
namorar... Isso é liberdade, mas para isso tem que se ter tempo.
Parece mentira isso? O capitalismo luta para lhe roubar
todo o tempo, e o que rouba é seu tempo de vida. Você tem que melhorar a
produtividade, aumentar o rendimento de trabalho, existe a
competividade, e por aí vai. Então, o que [o capitalismo] quer é
que termine sendo um velho que gastou a vida toda trabalhando e
consumindo. E nós não devemos lutar por uma utopia de que em algum dia
teremos uma sociedade melhor, temos que lutar para que as pessoas vivam
mais felizes hoje, não dentro de 50 anos. Que vivam mais felizes hoje, e
para isso tem que ter tempo.
Não digo que as pessoas não tenham que trabalhar, pois
quem não trabalha está vivendo às custas de outro que trabalha. O que
quero dizer é que a vida não é somente para trabalhar e o que o
capitalismo quer é que a vida seja para trabalhar, consumir e tchau. E
nós devemos lutar para que a vida seja a mais feliz possível, pois é a
única que se tem. Este é um terreno que entra na filosofia e, porque
somos de esquerda, não podemos ter a filosofia deles, de que a vida é só
para produzir, trabalhar, consumir e se enterrar. Não. Há uma margem
para trabalhar, por isso o conceito de sobriedade implica aprender a
andar com a bagagem leve. Não me fazem comprar qualquer coisa.
Eu uso um Fusca. Por quê? Por que eu vou querer andar mais rápido que 80 km/h? É um perigo. Não há impostos [do carro]. Por que andar mais rápido? Se vou morrer do mesmo jeito, que pressa eu tenho?
Qual o balanço que o senhor faz desses cinco anos na presidência do Uruguai?Fizemos
muitas coisas. Porém, hoje, há ainda 0,5% das pessoas na miséria. Isso
dito assim, são só números, mas atrás dessas cifras há vidas humanas.
Pudemos fazer muitas coisas que avançaram nos direitos sociais,
conseguimos ampliar as liberdades. Reconhecemos o matrimônio
igualitário, porque acontece em todo mundo e é estúpido não
reconhecê-lo. Tratamos de combater o narcotráfico pela via da
regulamentação do mercado, não que estejamos de acordo com o consumo de
droga. Porém, pior que a maconha é o narcotráfico. A maconha é perigosa
se consumida em excesso, por isso é necessário tê-la regularizada e não
ter o consumo clandestino.
Vou ser mais claro: se eu tomo dois ou três uísques por
dia, não será bom, mas é suportável. Agora, se tomo uma garrafa por dia,
vou morrer de coma alcoólico. Esse critério, tratamos de abrigar em
todas as políticas, reconhecer a realidade, por mais que não te agrade,
porque reconhecê-las é tratar de retirar os efeitos negativos que aquela
realidade pode ter. Olhe, isso nem é de esquerda, isso deveria ser o
senso comum.
O governo uruguaio priorizou as relações com os
países da América do Sul. Porque acredita que devemos priorizar essas
parcerias aos acordos com Europa e EUA?Nós vivemos
muito tempo mirando os EUA e a Europa, sem olhar para nosso continente. O
mundo está se confirmando como um sistema de muitas unidades reunidas. A
Europa está em crise, mas ainda mantém um bloco forte. A China é um
velho Estado multinacional. Os EUA seguem sozinhos, porém, com uma terra
prometida quase vazia ao lado, que é o Canadá. Nós, os
latino-americanos, se queremos ter algum peso nesse mundo que vem, temos
que nos dar conta de que individualmente não vamos a lugar algum –
mesmo países grandes como o Brasil, sozinhos, não vão ter sucesso. Por
quê? Porque chegamos muito tarde.
Se nós todos [países da América do Sul], para
tratar de equilibrar esse mundo, não temos como estabelecer com
políticas federais uma aproximação que nos permita desembocar em um
desenvolvimento comum, vai ser muito difícil negociar com essas
potências. No mundo que está por vir, não há lugar para os fracos. Para
que haja menos fracos, não há outro caminho, temos que nos juntar. Nós,
juntos, temos muitas possibilidades, muitos recursos, muitas promessas,
mas não somos uma realidade. Já passou da hora de pensarmos como
continente integrado, de pensarmos como um único país, não podemos nos
acomodar. Se não existe vontade política nos governos, jamais vamos
construir uma sociedade mais justa. Mas esse é um tema muito complicado.
Os governos estão preocupados com quem ganha a próxima eleição e as
alianças para que isso seja possível, enquanto no momento de discutir
temas em comum somos muito fracos.
O senhor entende que há um avanço da direita e uma onda de movimentos golpistas na América do Sul?O
que há é uma nova tecnologia que está movendo a direita imperialista no
mundo, com uma doutrina que busca, por métodos civis e não violentos,
desestabilizar a situação dos governos. Isso tem se aplicado contra
qualquer governo que se mostra medianamente progressista. Essa é uma
nova forma de luta que a direita tem encontrado, na qual utiliza
reivindicações próprias da esquerda tradicional e seus métodos para
trocar o governo que não lhe agrada. É um tema difícil.
Em 1986, o ex-presidente [Julio] Sanguinetti disse
que os tupamaros não tinham futuro político e nem possibilidades
eleitorais, que o passado da organização não permitiria uma aceitação
popular. Hoje, podemos dizer que ele se equivocou?Temos
que perguntar a ele [risos]. Filho, às vezes, nós de esquerda, nos
equivocamos também. Ninguém tem a palavra santa, viu? Ninguém. A vida é
muito mais complexa do que parece. Havia um sábio da política de sua
época que dizia assim: “Na política, não se escreve nada, se fala pouco e
se pensa muito”. Verdade. Eu reforçaria, não se escreve nada [risos].
O que faria o senhor pegar em armas, hoje?Penso
que nada. Hoje, devemos pensar se há guerras justas e injustas. O
avanço tecnológico, essa disparada tecnológica no mundo de hoje, em
favor da guerra, leva a sacrifícios enormes uma série de pessoas que não
tem nada que ver com essa guerra. Há um terror tecnológico, um aparelho
que lhe permite matar as pessoas sem sequer conhecê-las, à distância, e
ainda lhe dão créditos por heroísmo. Não estou afirmando que não temos
que lutar. Há outra forma de luta e temos que nos dar conta. Afirmar
isso contra a guerra não é cair em um “pacifismo de pomba branca”, não.
Se trata de não perder vidas. Há maneiras distintas de se usar a
rebeldia e a inconformidade humana para a luta, sem ser pela via armada,
e que são enormemente questionadoras.
O que o tempo preso mudou em sua vida e como viu o mundo aqui fora quando saiu?Mudou
o mundo, mudou o tempo e, até hoje, há mudanças. Quando saímos da
prisão, concluímos que seria pueril continuar com o movimento armado e
clandestino, pareceria uma provocação estúpida. Por cima de todas as
coisas, vale pouco o que nós pensamos se as pessoas não entendem, porque
toda decisão que tomamos na vida política precisa que as pessoas
estejam próximas. Se as decisões e caminhos que escolhemos nos afastam
das pessoas, estamos fracassados, por mais heroica e romântica que possa
parecer nossa luta. Então, decidimos entrar para a legalidade e jogar
as regras do jogo. Penso que não nos equivocamos, porque, se
estivéssemos errados, não chegaríamos onde hoje chegamos.
Acho que mitigamos muitas das misérias de nossa sociedade, muito tem
que ser feito ainda, mas se tivéssemos continuado com nossas convicções,
hoje seríamos um grupo de velhos filósofos debatendo no café e falando
de histórias do passado. Não podemos viver de história, o ontem serve
para pensar que caminho faremos amanhã, mas é amanhã que a vida se joga.
Como foi possível realizar uma revolução de costumes no Uruguai, com tantas mudanças profundas?Se
olharem para a história do Uruguai, vão ver que somos um povo aberto a
mudanças. Em 1914, regularizou-se a prostituição. Muito cedo, se
estabeleceu o divórcio por vontade da mulher. O Uruguai é o país mais
laico de toda a América Latina. Aqui também se fundou muito cedo uma
universidade feminina, que estimulava as famílias para que mandassem
suas filhas para estudar. Então, estamos acostumados com mudanças e
avanços progressistas.