A Nova República acabou
Por Vladmir Safatle
O modelo de governabilidade sintetizado no fim da ditadura não faz mais sentido. Cabe à esquerda defender seu fim
"Difícil falar em aperfeiçoamento (da democracia) quando se percebe a impossibilidade da estrutura institucional brasileira em aumentar a densidade da participação popular nos processos decisórios do Estado, a permeabilidade da partidocracia brasileira a interesses econômicos, sua corruptibilidade como condição geral de funcionamento e sua representação imune a qualquer crítica às distorções."
Sim, nenhuma reflexão
política sobre a situação brasileira atual pode dar conta da realidade
se não partir de uma constatação clara a respeito do fim da Nova
República. De fato, não é apenas o ciclo de desenvolvimento do lulismo
que acabou. O modelo de governabilidade sintetizado no fim da ditadura
militar, com sua dinâmica de conflitos, suas polaridades e projetos, não
faz mais sentido algum. Nesse sentido, de nada adianta alimentar a
ilusão de que o Brasil anda lentamente em direção ao “aperfeiçoamento
democrático” e à “consolidação de suas instituições”. Difícil falar em
aperfeiçoamento quando se percebe a impossibilidade da estrutura
institucional brasileira em aumentar a densidade da participação popular
nos processos decisórios do Estado, a permeabilidade da partidocracia
brasileira a interesses econômicos, sua corruptibilidade como condição
geral de funcionamento e sua representação imune a qualquer crítica às
distorções.
Quando junho de 2013 explodiu,
esperava-se que, ao menos, entrássemos em um processo de debate sobre a
reinvenção da estrutura política brasileira, criticada nas ruas por seu
autismo e seu cheiro de negociata. Estamos em 2015 e a única “reforma
política” no horizonte consegue piorar ainda mais o que já era bastante
ruim, ainda mais ao ser capitaneada por pessoas do quilate dos
“indiciados lutando para sobreviver através de toda forma de chantagem”,
Eduardo Cunha e Renan Calheiros.
Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
Sim, meus amigos, tudo isso apenas
demonstra como a Nova República acabou. Sua governabilidade foi fundada
em dois pilares: a cooptação constante de trânsfugas da ditadura
(Sarney, ACM, Jorge Bornhausen etc.) e a gestão da massa fisiológica
alimentada pelos cálculos oligárquicos locais. Essa era a forma de
“evitar conflitos”, criando uma aparência de estabilidade paga com
inércia, violência policial e espasmos de crescimento com alta
concentração.
Dois atores apareceram como gestores
desse modelo de governabilidade. Primeiro, o setor do PMDB com mais
capacidade de formulação, a saber, aquele que resultou no PSDB. Segundo,
a união entre sindicalistas, intelectuais e setores progressistas da
Igreja Católica que levou à fundação do PT. Os dois terminaram de forma
muito parecida: reféns de políticas que prometeram combater, professando
uma racionalidade econômica no limite do indistinguível, lutando para
sobreviver ao final diante de profundo desencanto social expressado em
depressão econômica, política, intelectual e cultural. Nos dois casos, a
população brasileira viu o espetáculo deprimente de atores que
paulatinamente foram mudando de rosto até chegarem ao irreconhecível.
Isso ocorreu porque a essência da Nova República foi a reversão do
potencial de transformação em conservação.
Agora, a política brasileira volta às
ruas. Infelizmente, pelas mãos de uma direita descomplexada, com sua
indignação farsesca, seu moralismo a servir apenas como arma contra os
inimigos porque se cala diante dos amigos, suas propostas medievais de
produzir uma sociedade na qual políticas de solidariedade social e de
combate à desigualdade se resolvem ao deixar a elite rentista
vampirizando, de maneira intocada, a economia brasileira. Mas esse é o
resultado de termos uma esquerda acuada à procura de salvar um governo
que já naufragou e não pode ser salvo. Esse governo cometeu dois erros
imperdoáveis: desmobilizou seu próprio campo ao escolher o lado das
políticas a serem aplicadas e deixou o medo se transformar no afeto
político central. A questão para a esquerda é se quer naufragar com ele
ou não.
À esquerda, cabe agora dizer com todas as
letras que se trata de abandonar de vez esse modelo de governabilidade
com seus acordos paralisantes, esses atores políticos e suas leituras de
ideias. Em uma situação na qual, desde de 2013, a sociedade brasileira
luta desesperadamente por se reinventar, abrindo espaço para o seu
melhor, mas também para o seu pior, não é possível fazer da esquerda o
defensor do partido da ordem. Esse sempre foi um país que nunca deixou
de sonhar e produzir modificações brutais nesses últimos anos, um país
que mesmo na época da ditadura conseguia lutar sonhando. Nada pior do
que não contar agora com a força dos sonhos.
Vladimir Safatle é professor no Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo, além de professor convidado em outras
universidades e instituições europeias. É colunista semanal do jornal Folha de S. Paulo e da Revista Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário