A crise como álibi
Vladimir Safatle
Professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo
Nos últimos dias, o Brasil tem acompanhado os debates a respeito do que
fazer diante da crise econômica na qual estamos. Uma certa narrativa
parece ter se consolidado. Trata-se da imagem de um país em "fase
terminal" devido ao desequilíbrio fiscal pretensamente resultante da
"gastança pública".
Neste sentido, não haveria outra saída a não ser aplicar a versão
tupiniquim de um "choque de austeridade" baseado no "corte corajoso de
gastos". Mesmo esta Folha, em editorial no último domingo (13),
conclamou o governo a adotar tal caminho através, entre outros, da:
"desobrigação parcial e temporária de gastos compulsórios em saúde e
educação, que se acompanharia de criteriosa revisão desses dispêndios no
futuro". Caso isto não ocorresse, não restaria à presidente, ao
dobrar-se à crise, "senão abandonar suas responsabilidades presidenciais
e, eventualmente, o cargo que ocupa".
Mas o que significa o caminho proposto? De fato, certo equilíbrio fiscal
pode ser alcançado desta forma, mas a que preço? Pois há de se
perguntar sobre qual país nascerá ao final deste processo de ajuste.
Diria que toda reflexão sobre a situação brasileira atual deveria partir
do fim, pois há fins distintos que podem ser alcançados.
Um país desigual como o Brasil e que aceitasse rever o seu padrão de
gastos com serviços públicos caminharia para a precarização ainda maior
das parcelas mais desfavorecidas de sua população. Como não poderá mais
ter serviços mínimos de saúde e educação, a camada mais pobre terá de
trabalhar mais, isto em um contexto de flexibilização e ausência de
garantias de trabalho. A crise seria apenas um álibi para a
intensificação da espoliação de classe.
Por isto, implementar propostas que têm circulado ultimamente, como
cobrança por serviços do SUS e mensalidades em universidades públicas,
significa aprofundar a espiral de miséria. Diga-se de passagem, uma
crise não precisa de cortes em educação. Ao contrário, é neste momento
que os investimentos em educação são mais necessários e estratégicos
pois são eles que permitirão a abertura de novos caminhos para a
economia. Por estas razões, não é difícil perceber que o país que sairia
depois de tal "austeridade" seria um país mais desigual, mais injusto e
socialmente violento.
Alguns poderiam perguntar se afinal haveria outra saída. Ela existe, mas
é sempre apresentada de forma caricata e distorcida, como se fosse o
caso de não permitir que o país encare a brutalidade de sua injustiça
social. Pois estamos a falar de um país, como o Brasil, no qual há uma
parcela da população que desconhece a crise, que neste exato momento tem
seus rendimentos garantidos porque aproveita-se da valorização obscena
do capital oferecida pelo sistema financeiro com suas taxas criminosas
de juros.
Nosso país não é mais um país de industriais e empresários. Ele é um
país de rentistas, ou seja, de gestores do capitalismo patrimonial. Um
país onde uma classe vive sem trabalhar, apenas gerindo suas heranças e
aplicando seu capital. Tais rentistas não conhecerão crise, assim como o
sistema financeiro com seus lucros bancários recordes.
Se quisermos fazer o Brasil sair desta crise sendo um país mais justo e
igualitário será necessário encarar corajosamente, na verdade, a
desregulação tributária vergonhosa a que nossa população está submetida.
Fala-se que a carga tributária brasileira "é a mais alta do mundo". Eis
uma pura e simples mentira. Tentem saber qual a carga de países como
Alemanha e França, por exemplo.
Na verdade, o Brasil é o país que tem a carga tributária mais injusta,
pois ela incide basicamente sobre o consumo e produção, não sobre a
renda. Os impostos estão nos produtos que compramos. Por isto, quem
ganha menos paga proporcionalmente mais. Mais correto seria taxar a
renda, as heranças, as grandes fortunas, os lucros bancários, obrigando
os ricos a fazerem o que não fazem no Brasil ou seja, contribuírem.
Vejam, por exemplo, toda a hipocrisia em torno da CPMF. Eis um dos
impostos mais justos que este país já teve, pois incide em quem mais usa
o sistema financeiro, ou seja, os mais ricos. Os mesmos que tentam
vender seus interesses de classe como se fosse interesse geral da
população. Uma CPMF de 0,38%, por exemplo, renderia ao Estado R$ 60
bilhões. Perguntem quanto teríamos com imposto sobre grandes fortunas
(tal estudo o governo brasileiro simplesmente nunca fez, por que será?).
O que é melhor: retirar a gratuidade do SUS, levar a classe média pobre a
pagar universidades públicas ou obrigar os mais ricos a arcarem com a
conta da crise?
Obtido de: http://bit.do/vladimir-safatle-a-crise-como-alibi
Todos os direitos reservados ao jornal Folha de São Paulo. Este post tem finalidade educacional a comunidades carentes de acesso à informação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário