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Consenso Negativo
Ao conceder superpoderes à Presidência e transferir decisões para o Judiciário, parlamentares viraram judas de malhação
15 de março de 2014 | 15h 33
Carlos Melo*
É fato que durante algum tempo o presidencialismo de
coalizão do Brasil fez o seu papel: o antipático "é dando que se recebe"
foi impiedosamente apedrejado pela opinião pública, mas contribuiu para
a efetivação de importante agenda econômica e social. O País saiu da
ditadura e do caos inflacionário para um regime que distribuiu renda e
fez considerável inclusão. Modernizou-se em vários aspectos e, mesmo com
tanta desinteligência que há, é mais democrático do que jamais foi.
Houve inegável avanço. Pode-se dizer que o preço - na moeda corrente de
cargos e recursos públicos que distribuiu - valeu, já que a
transformação não foi pequena. Política também é custo-benefício, e o
Brasil de hoje é melhor do que há 20 anos. Ademais, em qualquer lugar,
fazer reformas profundas é tarefa custosa.
Dida Sampaio/Estadão
'Blocão'. Temos partidos que não mais representam partes do todo social
Culpa dos governos que não têm agenda, ou não têm agenda porque não acreditam na capacidade de suas coalizões cumprirem acordos sem impor novos custos, tornando o processo de reforma mais dispendioso que o mal que se procura curar? O fato é que há um vazio de projetos, planos, propostas; um irritante vazio de Política com o "P" maiúsculo. O Brasil chegou à perfeição ou houve uma rendição incondicional às impossibilidades colocadas pela pequena política? Estamos longe, muito longe, da perfeição.
Burocratas tocam o barco, esperando pelo final do expediente; acreditam em ordens. Já estadistas são visionários, enxergam adiante com olhos no futuro distante; trabalham com a persuasão, a todo o momento. Estão escassos no Brasil de hoje. A impressão é que a realidade dobrou espíritos ousados e a única providência possível é contornar os problemas em vez de resolvê-los; deixar que o longo prazo e a crise resolvam o que a timidez e os interesses imediatos não permitem no presente. Quem nasceu primeiro: o vazio de propostas ou a desconfiança dos governos de seus aliados? É possível que sejam gêmeos. O fato é que esvaziar a agenda parlamentar aliciando partidos e políticos tornou-se o mais comum.
Mansamente, o Legislativo se deixou cooptar, abriu mão de prerrogativas e concedeu superpoderes aos presidentes da República. Também transferiu ao Judiciário a responsabilidade de decidir questões que lhe caberiam. Fez de Dilma e de Joaquim Barbosa os heróis de cada uma das metades em que o País tem se dividido. Mas, também, transformou parlamentares num consenso negativo nacional: judas em sábado de aleluia. A safra de políticos é ruim - raros resistiriam a testes mínimos de qualidade. Isso faz com que se despreze a própria atividade. Sem plantar boas sementes de Política, por geração espontânea só crescerá erva daninha nesse pasto.
Partidos políticos deveriam, como diz o nome, representar partes do todo social; parlamentares negociariam interesses difusos, amalgamando a sociedade. O Brasil tem hoje 34 partidos; seria interessante se pudéssemos creditar essa expressiva quantidade à variedade de grupos e interesses reais em ação. Não há, entretanto, setores que se sintam realmente representados. O descolamento revela que o sistema assumiu uma lógica própria, funcionando, basicamente, para si mesmo. Os cargos e o poder que lhes cabem na divisão de recursos - escassos - retornam à sociedade apenas se, ocasionalmente, os interesses de partidos e políticos vierem a coincidir com interesses sociais mais amplos. A coincidência de interesses deixou de ser regra, é exceção.
Pelo ângulo estrito da real política que se faz, a crise entre o governo Dilma e sua base não surpreende. É o que tem sido, uma mesmice sem novidades. Então, não há momento melhor para garantir posições e recursos do que períodos pré-eleitorais; arriscar a reeleição de Dilma parece ser pressão suficiente para derrubar barreiras, nos Estados e no ministério. Assim, o PMDB e aliados acautelam-se para que a fonte de sua força não se esgote. Já o governo, apoiado no suposto favoritismo da presidente, busca sujeitar aliados incômodos que têm retirado do PT importantes nacos de poder - no Congresso Nacional, nos Estados e no ministério. Falta Política num grau elevado. E mesmo para a política que se tem, inexiste coordenação capaz de fazer a partilha. Não se sabe que a alcateia é controlada com sagacidade, não com rugidos de tigres desdentados? Enfim, não se trata de projeto, visões de mundo, conflitos ideológicos: a parada se resume ao cretinismo eleitoral a que a Política foi reduzida. Só isso.
* Carlos Melo é cientista político, professor da Insper e autor de Collor - o ator e suas circunstâncias (Novo Conceito).
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