ELIANE BRUM Jornalista, escritora
e
documentarista. Ganhou mais
de 40 prêmios nacionais
e
internacionais de reportagem.
É autora de um romance -
Uma
Duas (LeYa) - e de três
livros de reportagem:
Coluna
Prestes – O Avesso da Lenda(Artes e
Ofícios),
A Vida Que
Ninguém Vê
(Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007)
e O Olho da Rua
(Globo).
E codiretora de dois
documentários: Uma
História
Severina e Gretchen
Filme
Estrada.
elianebrum@uol.com.br@brumelianebrum
Se você é aquele tipo de leitor que acha que Belo Monte vai
“afetar apenas um punhado de índios”, esta entrevista é para
você. Talvez você descubra que a megaobra vai afetar diretamente
o seu bolso. Se você é aquele tipo de leitor que acredita que os
acontecimentos na Amazônia não lhe dizem respeito, esta
entrevista é para você. Para que possa entender que o que
acontece lá, repercute aqui – e vice-versa. Se você é aquele
tipo de leitor que defende a construção do maior número de
usinas hidrelétricas já porque acredita piamente que, se isso não
acontecer, vai ficar sem luz em casa para assistir à novela das
oito, esta entrevista é para você. Com alguma sorte, você pode
perceber que o buraco é mais embaixo e que você tem consumido
propaganda subliminar, além de bens de consumo. Se você é aquele
tipo de leitor que compreende os impactos socioambientais de uma
obra desse porte, mas gostaria de entender melhor o que está em
jogo de fato e quais são as alternativas, esta entrevista também
é para você.
Como tenho escrito com frequência sobre a megausina
hidrelétrica de Belo Monte, por considerar que é uma das questões
mais relevantes do país no momento, observo com atenção as
manifestações dos leitores que comentam neste espaço ou em redes
sociais como o Twitter. Anotei as principais dúvidas para
incluí-las aqui e assim colaborar com o debate.
Desta vez, propus uma conversa sobre Belo Monte a Célio
Bermann, um dos mais respeitados especialistas do país na área
energética. Bermann é professor do Instituto de Eletrotécnica e
Energia da Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em
Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Publicou vários
livros, entre eles: “Energia no Brasil: Para quê? Para quem? –
Crise e Alternativas para um País Sustentável” (Livraria da
Física) e “As Novas Energias no Brasil: Dilemas da Inclusão
Social e Programas de Governo” (Fase). Ex-petista, ele participou
dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do
programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma
Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia.
Célio Bermann foi também um dos 40 cientistas a se debruçar
sobre Belo Monte para construir um
painel
que, infelizmente, foi ignorado pelo governo federal.
Vale a pena ouvir o professor a qualquer tempo. Mas,
especialmente, depois de uma semana dramática como a passada. Na
quarta-feira (26/10), o julgamento da ação movida pelo Ministério
Público Federal reivindicando que os índios sejam ouvidos sobre a
obra, como determina a Constituição, foi interrompida e adiada
mais uma vez no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em
Brasília. Na mesma quarta-feira, chamado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (OEA) para explicar por que não suspendeu as obras de
Belo Monte, o Brasil não compareceu, desrespeitando o organismo
internacional e exibindo um comportamento mais usual em ditaduras.
Em reportagem publicada em 20/10, o
Estadão
denunciou que, como retaliação por ter sido advertido sobre Belo
Monte, o Brasil deixou de pagar sua cota anual como estado-membro.
Na quinta-feira (27/10), centenas de pessoas, entre indígenas,
ribeirinhos e moradores das cidades atingidas, ocuparam
pacificamente o canteiro de obras de Belo Monte, no rio Xingu,
pedindo a paralisação da construção da usina. Foram expulsos
por ordem judicial. Enquanto o canteiro de obras era ocupado por
uma população invisível para o governo de Dilma Rousseff, o
cineasta Daniel Tendler apresentava no Seminário Nacional de
Grandes Barragens, no Rio de Janeiro, o projeto de uma megaprodução
cinematográfica que se propõe a documentar as obras de Belo Monte
por cinco anos. O
projeto
é comandado pela LC Barreto, a produtora da poderosa família
Barreto, a mesma que fez “Lula, O Filho do Brasil”. Tendler,
aliás, foi um dos roteiristas do filme sobre a vida do
ex-presidente. Entre as repercussões da megaprodução
cinematográfica sobre a megaobra do PAC no Twitter, destacou-se
uma: “Os Barreto estão para o cinema nacional como os Sarney
para a política”.
Ainda na semana passada, o governo federal publicou um pacote de
sete portarias ministeriais com o objetivo de “destravar a
concessão de licenças ambientais no país para acelerar grandes
empreendimentos, como rodovias, portos, exploração de petróleo e
gás, hidrelétricas e até linhas de transmissão de energia”.
Ou seja: o governo caminha para anular as conquistas
socioambientais obtidas na redemocratização do país.
Dias antes, em 26/10, o Senado havia aprovado um projeto de lei
que retira o poder do Ibama para multar crimes ambientais, como
desmatamentos. Se não for vetado pela presidente, o poder de
multar passará para estados e municípios, sujeito às pressões
locais já bem conhecidas. A aprovação do projeto aconteceu
quatro dias depois de mais um assassinato no Pará: João Chupel
Primo, mais conhecido como João da Gaita, foi morto com um tiro na
cabeça, depois de denunciar ao Ministério Público Federal, em
Altamira, uma rota de desmatamento ilegal na reserva extrativista
Riozinho do Anfrísio e na Floresta Nacional Trairão, área do
entorno de Belo Monte. Como de hábito, o Congresso decide os rumos
do país desconectado com o que acontece na vida real para além do
aquário brasiliense.
No momento histórico em que recursos como água e
biodiversidade se consolidam como o grande capital de uma nação,
o Brasil, um dos países mais beneficiados pela natureza no
planeta, corre em marcha à ré. O cenário que você acabou de ler
tem no centro – como obra simbólica e estratégica – Belo
Monte, a maior obra do PAC. A seguir, parte de minha conversa de
quase três horas com o professor Célio Bermann, em sua sala no
Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.
- Por que o senhor, assim como outras pessoas que
estudam o setor, afirma que a área energética do país é uma
“caixa preta”. Afinal, que caixa preta é essa?Célio
Bermann – A política energética do nosso país é uma
caixa preta e é mantida dessa forma por uma série de razões.
Primeiro, porque a baixa escolaridade da população brasileira não
permite, por exemplo, que o leitor da Época entenda o que é
terawatts-hora. Mas seria interessante que a população toda
tivesse conhecimento e pudesse, com informação, começar a
definir junto com empresas e governo os rumos que são mais
adequados. Acho que a academia tem um papel fundamental nesse
processo. Eu, particularmente, tento, na área do meu conhecimento,
procurar as populações tradicionais, mostrar o que é uma usina
hidrelétrica, por que alaga quando você interrompe o fluxo, o que
é uma barragem, e como isso vai acabar transformando a vida da
comunidade. Acho importante que a academia preste esse tipo de
informação, já que governo e empresas não o fazem.
- Sim, mas por que o setor energético tem sido uma
caixa preta por décadas?
Bermann - A governabilidade
foi encontrada através de uma aliança que mantém o círculo de
interesses que sempre estiveram no nosso país. É a mesma turma
que continua na área energética. E isso é impressionante. A
população não participa do processo de decisões. Não existem
canais para isso. Ainda no governo FHC, durante a privatização, o
governo criou um Conselho Nacional de Política Energética. Nos
dois mandatos de FHC participavam os dez ministros, mas havia um
assento para um representante da academia e um da chamada sociedade
civil. Eles sentavam, discutiam as diretrizes energéticas de uma
forma aparentemente saudável, mas, no frigir dos ovos, na prática
não mudava nada. De qualquer forma, havia pelo menos esse sentido
de escutar. Isso, com Lula, acabou. O resultado do governo
"democrático popular" do Lula, nos dois mandatos, e da
Dilma, agora, é a negação de escutar outros interesses que não
sejam aqueles que sempre estiveram junto ao poder. A própria
Dilma, no início do governo Lula, tinha uma dificuldade muito
grande de ouvir, de sentar-se com os movimentos sociais e ouvir. Eu
tive a oportunidade de vivenciar o primeiro mandato do Lula, lá,
em Brasília.
- E qual era o seu papel?
Bermann – Era
apagar fogo, este era o meu papel...
- Mas, oficialmente...
Bermann - O meu papel
era tentar amenizar um pouco os conflitos, mas, oficialmente, eu
fui trabalhar com a Dilma como assessor ambiental no Ministério de
Minas e Energia. A ideia inicial era criar uma Secretaria de Meio
Ambiente dentro do ministério. Era a época em que tínhamos a
Marina (Silva) falando em transversalidade, então havia um
ambiente extremamente propício para aparar arestas e ver se a
coisa poderia caminhar de uma forma mais adequada. Achei, então,
que a melhor forma de fazer isso não era criar um lugar dos
ambientalistas no ministério, mas colocar em todas as secretarias
do ministério gente que pensasse o meio ambiente. Mas acabei
ficando um ano lá em Brasília. Mesmo assim, foi extremamente
interessante, porque me permitiu sair da academia e ter, na
prática, a percepção de como as coisas se dão no dia a dia
dentro do governo.
- E como as coisas se dão no dia a dia dentro do
governo?
Bermann – É um horror. É uma lentidão. É
um imobilismo. É incrível a capacidade da máquina de governo de
fazer de conta que faz sem estar fazendo absolutamente nada. Eu
falo isso com todos os pontos nos “is”. No início do governo
se buscava um entendimento entre os chamados "ministérios
fins" e o meio ambiente. Transportes, por causa da construção
de estradas e portos, e Minas e Energia, por causa da atividade
mineral, metalúrgica e energética, e as questões ambientais que
são intrínsecas a essas atividades. Houve uma boa intenção de
levar adiante a possibilidade do estabelecimento de pontos comuns.
Fizemos, então, um acordo entre Ministério de Minas e Energia e
Ministério do Meio Ambiente em função da definição de "pontos
comuns", de procurar verificar onde poderíamos estabelecer
alguns consensos. Era um documento em que se definia uma agenda
energética e ambiental comuns aos dois ministérios. Se bem me
lembro, o documento foi concluído em setembro de 2003. Mas as duas
ministras só foram assinar em 31 de março de 2004.
- Por quê?
Bermann – Boa pergunta. Por
quê? Boas intenções... mas por quê? Eu realmente não consigo
definir exatamente se era uma questão de veleidade... não sei. No
final de 2003 a Marina começou a perceber a dificuldade de ela
continuar, e o Lula, daquele jeito dele, deixando a coisa
acontecer. Naquele momento, o governo poderia ter tido uma agenda
comum, um processo extremamente positivo de entender que existem
usinas hidrelétricas que não devem ser construídas.
Em 2003, a Dilma estava feliz porque
tinha conseguido afastar a turma do Sarney do setor elétrico"
Célio Bermann
- Imagino que não era fácil ser assessor ambiental da
Dilma Rousseff...
Bermann - É, foi uma coisa meio...
difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os
movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou
te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na
posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como
presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita,
alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a
turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa
deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar
alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época,
o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte... e
depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011).
- O José Antonio Muniz Lopes, um homem da cota do
Sarney, é um personagem longevo nessa história de Belo Monte...
Só para situar os leitores, em 1989, no último ano do governo
Sarney, ele era diretor da Eletronorte e foi no rosto dele que a
índia caiapó Tuíra encostou seu facão por causa da proposta de
Belo Monte (então chamada de Kararaô), naquela foto histórica
que correu mundo. O tal do Muniz já estava lá... Depois de deixar
a presidência da Eletrobrás, no início deste ano, continuou lá,
agora como diretor de Transmissão da Eletrobrás...
Bermann –
Pois então. Naquela época, em 2003, era ele o diretor da
Eletronorte que a Dilma tinha ficado feliz por ter conseguido
afastar. Por isso que eu falo que não é o governo Lula, é o
governo Lula/Sarney. E agora Dilma/Sarney. Constituiu-se um
amálgama entre os interesses históricos do superfaturamento de
obras, sempre falado, nunca evidenciado. Não se trata de construir
uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída,
alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para
isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é
a utilização do dinheiro público e especialmente o espaço de
cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É
neste momento que se fatura. É na construção o momento onde
corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são
comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao
expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como
Belo Monte.
- No momento em que o senhor encontrou a Dilma, logo na
constituição da equipe do primeiro mandato de Lula, o senhor
conta que ela estava feliz porque tinha conseguido tirar a turma do
Sarney do comando da área energética. O que aconteceu a partir
daí?
Bermann - A pergunta é: tirou mesmo?
- E qual é a resposta?
Bermann - Naquele
momento, manter esse pessoal à distância era estratégico para
reconstruir as relações e viabilizar algumas das diretrizes que
tinham sido objeto da proposta de governo. O que aconteceu é que a
vida dessa situação (de afastamento) foi extremamente curta
devido às relações de poder. Eles não gostaram de se sentir
afastados. E eu suponho que a percepção do problema da
governabilidade no governo Lula foi uma ação desses setores que
tinham percebido que estavam longe da teta da vaca e que não
podiam continuar assim. Qual era o jeito de fazer? PMDB era
oposição. Vamos conversar... E aí se reacomodam as questões. Eu
não digo que seja um grupo de ladrões mercenários. Não é isso
que está em jogo. Mas essa capilaridade do Sarney permite manter o
usufruto do poder. Eu não sou psicólogo para entender o que o
senhor Sarney pensa quando vê o Muniz voltar para o governo, ou
quando se encontra diante da incapacidade técnica do senador
Edison Lobão ao conduzir o Ministério de Minas e Energia no
governo Lula e agora no de Dilma. Não há lógica para isso. Vou
dizer de novo: não é possível a gente acreditar na capacidade
gerencial de um governo que se submete a esse tipo de articulação
política, colocando uma pessoa absolutamente incapaz de entender o
que é quilowatt, quilowatt-hora. De ir a público sem saber a
diferença entre tensão em volts e energia em quilowatts-hora.
- O senhor está falando do ministro de Minas e Energia,
Edison Lobão?
Bermann- Edison Lobão.
- E Belo Monte ocupa que lugar nesse jogo?
Bermann -
É a oportunidade de se fazer dinheiro e de se reconstituir as
relações de poder. Essa obra tinha sido sepultada em 1989, por
conta da mobilização da população indígena, e voltou à tona
no governo Lula, aprovada pelo Congresso (em 2005) com o discurso
de que era um novo projeto.
“O valor de Belo Monte aumentou em
mais de R$ 20 bilhões em apenas cinco anos. E deverá ser maior
ainda. Sem contar que 80% do financiamento é dinheiro público"
Célio Bermann
- A ameaça de retomar Belo Monte esteve presente também
durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas só no governo
Lula saiu mesmo do papel, o que ninguém imaginava que acontecesse,
devido ao apoio massivo dos movimentos sociais da região à
campanha de Lula. O senhor acha que o fato de Belo Monte ter saído
do papel tem a ver com a denúncia do Mensalão, em 2005, e a
recomposição das forças políticas para a eleição de 2006?
Bermann - Não tenho a mínima ideia. Mas vamos
falar em cifras, agora. Em 2006 o projeto foi anunciado com um
custo de R$ 4,5 bilhões. Você sabe, as cifras avançaram
violentamente. Antes de ir para o leilão, a usina foi avaliada em
R$ 19 bilhões. Foi feito o leilão e se definiu um custo fictício
de geração de energia elétrica de R$ 78 o megawatt-hora.
- Por que fictício?
Bermann - Fictício
porque esse custo não remunera o capital investido. É por isso
que várias empresas caíram fora do empreendimento, sob o ponto de
vista da geração da energia elétrica. Mas as grandes
empreiteiras estão presentes, porque não é na venda da energia
elétrica, mas sim na obra que se dá uma parte significativa da
apropriação da renda. Com o consórcio constituído com 50% entre
Eletrobrás e Eletronorte, as empreiteiras voltaram para fazer a
obra. A elas interessa a obra – e não ficar vendendo energia
elétrica. Essa situação é entendida pelos dirigentes, pelo
governo, como normal. Para o governo federal, é uma parceria
público-privada que está dando certo. Em que termos? A obra hoje
está oficialmente orçada em R$ 26 bilhões. Imagine, de R$ 4,5
bilhões para R$ 26 bilhões...
- Em cinco anos, o valor da obra avançou em mais de R$
20 bilhões?
Bermann – Oficialmente está hoje orçada
em R$ 26 bilhões. Mas existem estimativas de que não vai sair por
menos de R$ 32 bilhões. Isso sem falar em superfaturamento.
- Deste valor, quanto sairá do BNDES, ou seja, do nosso
bolso?
Bermann – Oitenta por cento da grana para isso
é dinheiro público. O que estamos testemunhando é um esquema de
engenharia financeira para satisfazer um jogo de interesses que
envolve empreiteiras que vão ganhar muito dinheiro no curto prazo.
Um esquema de relações de poder que se estabelece nos níveis
local, estadual e nacional – e isso numa obra cujos 11.200
megawatts de potência instalada só vão funcionar quatro meses
por ano por causa do funcionamento hidrológico do Xingu. Então, é
preciso entender que a discussão sobre a volta da inflação não
se dá porque está aumentando o preço da cebola, do tomate, do
leite... É por causa da volúpia de tomar recursos públicos que
será necessário fabricar dinheiro. O ritmo inflacionário vai se
dar na medida em que obras como Belo Monte forem avançando e
requerendo que se pague equipamento, que se pague operários, que
se pague uma série de coisas e também que se remunere com
superfaturamento.
Com Belo Monte, ganham as
empreiteiras e os vendedores de equipamentos. E ganham os políticos
que permitem que essa articulação seja possível"
Célio Bermann
- Quem perde a gente já sabe. Agora, quem ganha, além
das empreiteiras envolvidas na obra?
Bermann - Há as
pessoas que ganham pela obra - fabricantes de equipamentos,
empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas
politicamente, por permitir que essa articulação seja possível,
porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo
mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente
aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: "É obra minha!".
É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política
se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É
complicado.
- O senhor costuma usar a expressão “Síndrome do
Blecaute” para se referir ao pânico da população de ficar à
luz de velas devido a um apagão energético. Acredita que essa
“síndrome” é manipulada pelo governo federal e pelos grandes
interesses empresariais para emprestar um caráter de legitimidade
a megaobras como Belo Monte?
Bermann – O que eu tenho
chamado de "Síndrome do Blecaute" conduz à legitimação
de empreendimentos absolutamente inconsistentes. Belo Monte, como
foi provado pelo conjunto de cientistas que se debruçaram sobre o
tema (
painel
dos especialistas), é uma obra absolutamente indesejável sob
o ponto de vista econômico, financeiro e técnico. Isso sem falar
nos aspectos social e ambiental. Mas se dissemina uma ideia do caos
e, hoje, há 77 projetos de usinas hidrelétricas somente na
Amazônia que utilizam a "Síndrome do Blecaute" para se
viabilizarem. O fato de hoje o aquecimento global dominar a mídia
e o senso comum, assim como a própria academia, ajuda a mostrar a
hidroeletricidade como uma grande maravilha, independentemente do
lugar em que a usina vai ser construída e dos impactos que ela vai
causar. Mas o que é preciso compreender e questionar? Hoje, seis
setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no
país. Dois deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é
o cimento e a indústria química. Mas os outros quatro têm uma
parte considerável da produção para exportação: aço, alumínio
primário, ferroligas e celulose.
- As chamadas indústrias eletrointensivas...
Bermann
– Isso. Eu não estou defendendo que devemos fechar as
indústrias eletrointensivas, que demandam uma enorme quantidade de
energia elétrica a um custo ambiental altíssimo. Mas acho
absolutamente indesejável que a produção de alumínio dobre nos
próximos 10 anos, que a produção de aço triplique nos próximos
10 anos, que a produção de celulose seja multiplicada por três
nos próximos 10 anos. E é isso que está sendo previsto
oficialmente.
- O que poucos parecem perceber e menos ainda
questionam, quando essas metas são comemoradas, é a forma como o
Brasil está inserido no mercado internacional em pleno século
XXI. O quanto o fato de nossa economia estar baseada na exportação
de bens primários tem a ver com a necessidade de grandes
hidrelétricas?
Bermann – Desde a ditadura militar,
passando pela redemocratização, pelos sucessivos governos até
FHC, tem sido assim. Nós imaginávamos que, com Lula, essa questão
ia ser reorientada. Porque o programa de governo em que eu me
envolvi preconizava a necessidade dessa mudança. E o que
aconteceu? Se você comparar os dados de 2001 com os dados de 2010,
vai constatar que a economia brasileira está se primarizando cada
vez mais. Isto é: cada vez mais são produzidos no Brasil bens
industriais primários, sem agregação de valor. E são justamente
os bens primários que consomem muita energia e geram pouco
emprego. Além disso, satisfazem uma demanda marcada pelo
consumismo. E o Brasil se mostrou incapaz de dizer: "Não, nós
não vamos fazer isso".
- E depois esses produtos retornam para o Brasil, via
importação, com valor agregado...
Bermann – É. Eu
sempre chamo a atenção para o fato de que, do alumínio primário
que o Brasil produz, 70% é exportado. E o alumínio consome muita
energia. Para se pegar um barro vermelho, que é a bauxita, e
transformá-la em alumínio, é preciso um processo de produção
extremamente devastador sob o ponto de vista ambiental. Há um
primeiro refino para obter a alumina, que é um pó branco. Esse pó
branco tem como consequência ambiental uma borra chamada de “lama
vermelha”. Um ano atrás, na Europa, na Hungria, houve uma
catástrofe em função do rompimento de uma barragem que continha
essa lama vermelha e tóxica. Ela se espalhou pelo Rio Danúbio e
foi um horror. E cada vez mais se faz isso no nosso país – e,
claro, não se faz mais isso nos países centrais. Isso não está
acontecendo agora no Brasil, está acontecendo desde os anos 70.
“Com Lula – e agora com Dilma –
ocorreu a reprimarização da economia, com exportação de bens
primários sem valor agregado, numa subordinação ao mercado
internacional"
Célio Bermann
- Houve acentuação desse processo no governo Lula e
agora no de Dilma Rousseff?
Bermann – O que acontece
a partir de Lula é o que eu tenho chamado de "reprimarização
da economia". Nós já tivemos uma época em que a economia
dependia basicamente da produção de bens primários: café,
açúcar e também alguns bens industriais primários. Depois,
tivemos Getúlio Vargas, Juscelino (Kubitschek), e nos anos 50
houve a substituição das importações com a vinda da indústria
pesada. Aquele período marca um processo acelerado de
industrialização da economia brasileira em que se buscava um
desenvolvimento tecnológico para acompanhar o ritmo internacional.
Agora, vivemos a reprimarização da economia. E não é uma
questão do governo, simplesmente. O governo poderia tornar essa
questão pública, dar condições para que a população
compreendesse e debatesse o que está em jogo, e isso pudesse
servir como base de apoio para uma tomada de decisão do tipo:
"Olha, Alcoa (corporação de origem americana com grande
presença no Brasil, é a principal produtora mundial de alumínio
primário e alumínio industrializado, assim como a maior
mineradora de bauxita e refinadora de alumina), vocês não vão
continuar aumentando a produção aqui no Brasil. Procurem um outro
lugar. A produção de energia elétrica gera um problema ambiental
enorme, um problema social enorme, e nós vamos priorizar a demanda
da população”. Mas, infelizmente, isso não é feito.
- Mas essa obstinação do governo Lula, e agora do
governo Dilma, em fazer Belo Monte, mesmo já tendo um prejuízo de
imagem aqui e lá fora, mesmo tendo mais de uma dezena de ações
judiciais contra a obra movidas pelo Ministério Público Federal,
fora as outras... Essa obstinação se dá apenas por causa do
esquema de governabilidade, do esquema político para as eleições
a curto e médio prazo, ou é por mais alguma coisa?
Bermann –
Isso já não te parece plausível? Ou você acha que tem alguma
coisa meio doentia, que precisa ser explicada? (risos)
- Doentia, não sei. Mas eu gostaria de compreender
melhor por que o senhor e a maioria dos especialistas que estudaram
o projeto afirmam que esta obra é ruim também do ponto de vista
técnico.
Bermann – Divulgaram que esta será a única
usina do Xingu. Inclusive, houve um seminário recente aqui na USP
em que tive a oportunidade de discutir com o Mauricio Tolmasquim
(presidente da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao
Ministério de Minas e Energia). E ele veio com essa ladainha: “Vai
ser a única...”. E eu disse a ele: “Com o perdão do poeta, o
que você está afirmando, somente de papel passado, com firma em
cartório e assinado: Deus”.
- O senhor não acredita que será a única usina do
Xingu, então?
Bermann – Me diga alguma coisa no
nosso país que vigorou como cláusula pétrea. Me fale alguma
coisa aqui no nosso país que foi dito de uma forma e se manteve ao
longo do tempo. VAI ser necessário construir outras usinas. No
atual projeto, esta é uma usina que vai funcionar à plena carga,
no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime hidrológico.
Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas
dependerá da quantidade de chuva. E aquela região tem a seguinte
característica: quando chove, quando tem água, quando desce a
água dos tributários para o Xingu é muita água, é um volume
enorme de água. Mas isso só acontece durante quatro meses por
ano. Só nesse período os 11.200 megawatts vão estar operando. Em
outubro, na época da estiagem, será apenas 1.100 megawatts, um
décimo. Então, a pergunta é: por que construir uma usina desse
porte, se, na média anual, ela vai operar com 4.300 megawatts?
Necessariamente vão vir as outras quatro. Eu estou afirmando isso,
infelizmente. Tecnicamente, eu tenho absoluta certeza. Porque as
usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte não vai
depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência
instalada de 11.200 megawatts existir de fato.
“O conceito do governo e das
empresas não é o de população atingida, mas o de população
afogada"
Célio Bermann
- O senhor está dizendo que o governo federal está
mentindo ao afirmar que será apenas uma usina, para conseguir
vencer as resistências ao projeto e aprová-la, e depois fará
mais três ou quatro?
Bermann – Estou dizendo que, da
forma como esta usina está colocada, é uma aberração técnica
tão grande que é totalmente ilógico construí-la.
- E essa afirmação, discutida hoje na Justiça, de que
os povos indígenas não serão atingidos?
Bermann –
A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de
população afogada – e não atingida.
- Agora, digamos que nós concordássemos que a
obstinação de construir Belo Monte, ainda que atropelando a
população e talvez a Constituição, se devesse à necessidade de
energia elétrica. E digamos que Belo Monte fosse de fato um
projeto de engenharia viável e inteligente. As usinas
hidrelétricas são as melhores opções para a geração de
energia no Brasil de hoje? Quais são as alternativas a
elas?
Bermann – Não podemos olhar a questão da
produção de energia sem questionar ou considerar o outro lado,
que é o consumo de energia. Parece meio prosaico, porque envolve
hábitos culturais da população. E a população sempre entendeu
que energia elétrica se resume a você apertar o botão e ter
eletricidade disponível. E por isso fica em pânico com a
“Síndrome do Blecaute”. Mas é preciso pensar além disso. Não
estou dizendo para fechar as fábricas de alumínio, de aço e de
celulose no Brasil. O que estou dizendo é o seguinte: parem de
ampliar a produção. Parem, porque diversos países desenvolvidos
já fizeram isso. O Japão fez mais do que isso. O Japão produzia,
em 1980, 1,6 milhões de toneladas de alumínio. Nós estamos
produzindo quase 1,7 milhões de toneladas hoje. Só que a energia
elétrica necessária para produzir alumínio tornou-se da ordem do
absurdo. Então o governo japonês, as empresas japonesas
produtoras de alumínio e os trabalhadores da indústria do
alumínio realizaram um debate que culminou com o fechamento de
todas as usinas de produção de alumínio primário no Japão,
exceto uma. Isso ainda nos anos 80. Hoje, o Japão produz apenas 30
mil toneladas. De 1,6 milhões para 30 mil toneladas. Diante da
necessidade de gerar muita energia para produzir alumínio, o que o
Japão fez? O governo e a sociedade japonesa disseram: “Vamos
priorizar a eficiência, o maior valor agregado. Nós não
precisamos produzir aqui. Tem o Brasil, tem a Venezuela, tem a
Jamaica, tem os lugares para onde a gente pode transferir as
plantas industriais e continuar a assegurar o suprimento para a
nossa necessidade industrial. A gente pega esse alumínio, agrega
valor e exporta na forma de chip. Parece uma coisa tão besta, né?
Mas foi isso o que os japoneses fizeram. Eles mantiveram o
crescimento econômico e reduziram a demanda por energia. Nós
estamos caminhando no sentido inverso. Estamos aumentando o consumo
de energia a título de crescimento e desenvolvimento, e, numa
atitude absolutamente ilógica, porque a gente exporta hoje a
tonelada de alumínio a US$ 1.450, US$ 1.500 dólares. E, para se
ter uma ideia, hoje falta esquadrias de alumínio no mercado
interno, no mercado de construção brasileiro. O preço foi
aumentado por indisponibilidade. Hoje, e fizemos um estudo recente
sobre isso, é preciso importar esquadrias de alumínio porque a
oferta no mercado interno é insuficiente. E, enquanto o Brasil
exporta o alumínio por US$ 1.450, US$ 1.500, o preço da tonelada
de esquadria importada é o dobro: cerca de US$ 3 mil a tonelada.
- Para o senhor, a questão de fundo é outra...
Bermann
- Nós temos pouca capacidade de produzir alumínio com
valor agregado. Então, não estou dizendo para fechar essas
fábricas, botar os trabalhadores na rua, mas dizendo para parar de
produzir alumínio primário, que exige uma enorme quantidade de
energia, e investir no processo de melhoria da matéria-prima para
satisfazer inclusive a demanda interna hoje insatisfeita. Agora,
vai perguntar isso para a ABAL (Associação Brasileira de
Alumínio). Veja se eles estão pensando dessa forma. Billiton,
Alcoa, mesmo o sempre venerado Antônio Ermírio de Moraes, com a
Companhia Brasileira de Alumínio. A perspectiva desse pessoal é a
cega subordinação ao que define hoje o mercado internacional, o
mercado financeiro. E é assim que o nosso país fica desesperado
com a ideia de que vai faltar energia.
Não é Programa Luz para Todos, mas
Luz para quase Todos ou Conta de Luz para Todos"
Célio Bermann
- Além de ser um modelo de desenvolvimento que prioriza
a exportação de bens primários, sem valor agregado, é também
um modelo de desenvolvimento que ignora o esgotamento de recursos.
Enquanto tem, explora e lucra. Alguns poucos ganham. O custo
socioambiental, agora e no futuro, será dividido por
todos...
Bermann – Isso. Os recursos naturais são
limitados. Por isso, no meu ponto de vista, a discussão do
aquecimento global obscurece o entendimento da hidroeletricidade em
particular. Ficamos às cegas. Para transformar o barro da bauxita
naquele pó branco do alumínio, que depois é fundido através de
uma corrente elétrica, é uma quantidade de energia enorme,
absurda. Essa possibilidade você não vai conseguir com energia
solar, com energia eólica. São processos produtivos que exigem a
manutenção do suprimento de energia elétrica 24 por 24 horas. A
solar não consegue fazer isso na escala necessária. Uma tonelada
de alumínio consome 15 a 16 mil kilowatts-hora. Para se ter uma
ideia, na média, o consumidor brasileiro consome, por domicílio,
180 kilowatts-hora por mês, o que é baixo. Nós ainda estamos
vivendo uma situação muito próxima da miserabilidade em termos
energéticos para a população. Nós temos uma demanda a ser
satisfeita com equipamentos eletrodomésticos. Satisfeita não
construindo grandes usinas hidrelétricas para as empresas
eletrointensivas, mas para conseguirmos equilibrar a qualidade de
vida, que se deve fundamentalmente a uma herança histórica: a de
sermos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo.
- Uma das piores distribuições de renda e uma das
piores distribuições de eletricidade do mundo...
Bermann –
Eu chamo o programa de universalização de "Luz para
quase todos". Não é para todos, é para quase todos. Desde
que estejam próximos da rede para extensão, tudo bem. Mas, para o
sujeito distante, só agora é que se começa a pensar em sistemas
de produção descentralizada. A percepção ainda é,
infelizmente, de pegar e estender a rede. Mas o custo de extensão
da rede é muito alto. Principalmente, se você pegar e atravessar
15 quilômetros para atender duas, três casas. O lógico seria a
adoção de energia descentralizada em escala menor, que seja mais
bem controlada pela população. Mas isso não passa pela cabeça
porque define inclusive uma outra relação social. Eu também
chamo esse programa de “Conta de luz para todos”, porque de
repente você fica refém de uma companhia e necessariamente paga
conta de luz, quando você poderia criar uma situação de
autonomia energética.
- O senhor poderia explicar melhor quais são as
alternativas para a população, já que todos nós crescemos
dentro de uma lógica em que recebemos a conta da luz e pagamos a
conta da luz; apertamos um botão na parede e a luz se faz. A
realidade está exigindo que sejamos mais criativos e tenhamos mais
largura de raciocínio. Quais são as alternativas para o cidadão
comum, especialmente o de regiões mais afastadas?
Bermann –
Depende muito do acesso à tecnologia existente no local ou na
região. Hoje, por exemplo, temos no Rio Grande do Sul uma
experiência de queimar casca de arroz para gerar energia. O calor
da queima da casca de arroz aquece a água, a água se transforma
em vapor e esse vapor é injetado num tubo e gira uma turbina
produzindo energia elétrica. Não tem nada de fantástico nisso,
esse processo é conhecido há muito tempo, mas, puxa vida, eu
estou tão acostumado a simplesmente acender e apagar o botão...
Vou ficar agora me preocupando se tem combustível? Existe um lado
meio trágico da população em geral que é o comodismo: deixa que
resolvam por mim. Então, quando você me pergunta sobre
alternativas, depende do que a gente está falando. Existem
alternativas promissoras deixando de produzir mais mercadorias
eletrointensivas. Como também é promissor ter esquemas de
financiamento para que o pequeno empresário adquira um painel
fotovoltaico (placa que transforma luz solar em energia elétrica)
ou uma usina de geração eólica (transformação de vento em
energia elétrica). E use essa tecnologia que está disponível
para satisfazer as suas necessidades, sem necessariamente ficar
ligado a uma grande linha de transmissão, de distribuição,
puxando energia não sei de onde.
- O que o senhor diria para a parcela da população
brasileira que faz afirmações como estas: "Ah, se não
construir Belo Monte não vai ter luz na minha casa", ou "Ah,
esses ecochatos que criticam Belo Monte usam Ipad e embarcam em um
avião para ir até o Xingu ou para a Europa fazer barulho". O
que se diz para essas pessoas para que possam começar a
compreender que a questão é um pouco mais complexa do que parece
à primeira vista?
Bermann – Não é verdade que nós
estamos à beira de um colapso energético. Não é verdade que nós
estamos na iminência de um “apagão”. Nós temos energia
suficiente. O que precisamos é priorizar a melhoria da qualidade
de vida da população aumentando a disponibilidade de energia para
a população. E isso se pode fazer com alternativas locais, mais
próximas, não centralizadas, com a alteração dos hábitos de
consumo. É importante perder essa referência que hoje nos marca
de que esse tipo de obra é extremamente necessário porque vai
trazer o progresso e o desenvolvimento do país. Isso é uma
falácia. É claro que, se continuar desse jeito, se a previsão de
aumento da produção das eletrointensivas se concretizar, vai
faltar energia elétrica. Mas, cidadãos, se informem, procurem
pressionar para que se abram canais de participação e de processo
decisório para definir que país nós queremos. E há os que
dizem: “Ah, mas ele está querendo viver à luz de velas...”.
Não, eu estou dizendo que a gente pode reduzir o nosso consumo
racionalizando a energia que a gente consome; a gente pode reduzir
os hábitos de consumo de energia elétrica, proporcionando que
mais gente seja atendida, sem construir uma grande, uma enorme
usina que vai trazer enormes problemas sociais, econômicos e
ambientais. É importante a percepção de que, cada vez que você
liga um aparelho elétrico, a televisão, o computador, ou a luz da
sua casa, você tenha como referência o fato de que a luz que está
chegando ali é resultado de um processo penoso de expulsão de
pessoas, do afastamento de uma população da sua base material de
vida. E isso é absolutamente condenável, principalmente se forem
indígenas e populações tradicionais. Mas também diz respeito à
nossa própria vida. É necessário ter uma percepção crítica do
nosso modo de vida, que não vai se modificar amanhã, mas ela
precisa já estar na cabeça das pessoas, porque não é só
energia, é uma série de recursos naturais que a gente
simplesmente não considera que estão sendo exauridos e
comprometidos. É necessário que desde a escola as crianças
tenham essa discussão, incorporem essa discussão ao seu
cotidiano. Eu também tenho uma dificuldade muito grande de chegar
aqui na minha sala e não ligar logo o computador para ver emails,
essas coisas. Confesso que tenho. Mas eu também percebo uma grande
satisfação quando eu consigo não fazer isso. E essa percepção
da satisfação é uma coisa cultural, pessoal, subjetiva. Mas ela
precisa ser percebida pelas pessoas. De que o nosso mundo não
existe apenas para nos beneficiarmos com essas "comodidades"
que a energia elétrica em particular nos fornece. Agora isso exige
um esforço, e a gente vive num mundo em que esse esforço de
perceber a vida de outra forma não é incentivado. Por isso é
difícil. E por isso, para quem quer construir uma usina, quer se
dar bem, quer ganhar voto, quer manter a situação de privilégio,
seja local ou nacional, para essas pessoas é muito fácil o
convencimento que é praticado com relação a essas obras. Por
mais que eu tenha sempre chamado a atenção para o caráter
absolutamente ilógico da usina, das questões que envolvem a
lógica econômico e financeira dessa hidrelétrica, para o absurdo
que é a utilização do dinheiro público para isso, para a
referência à necessidade de se precisar, num futuro próximo,
enfrentar um ritmo violento de custo de vida, emitindo moeda para
sustentar empreendimentos como esse, é muito difícil fazer com
que as pessoas compreendam a relação dessa situação com as
grandes obras. E Belo Monte é mais um instrumento disso. Eu não
sou catastrofista, não tenho a percepção maléfica da
hidroeletricidade. Não demonizo a hidroeletricidade. Eu apenas
constato que, da forma como ela é concebida, particularmente no
nosso país nos últimos anos, é uma das bases da injustiça
social e da degradação ambiental. Se não é pensando em você,
você necessariamente vai precisar pensar nas gerações futuras.
Este é o recado para o leitor: é preciso repensar a relação com
a energia e o modelo de desenvolvimento, é preciso mudar o nosso
perfil industrial e também é preciso mudar a cultura das pessoas
com relação aos hábitos de consumo. Nós precisamos mudar a
relação que nos leva a uma cega exaustão de recursos.
Em Brasília há um vírus letal que
se chama ‘Brasilite’. É um verme que entra pelo umbigo e faz
com que a pessoa se ache o centro do universo"
Célio Bermann
- O senhor acha que a Dilma tem essa obstinação com
Belo Monte, em parte, por teimosia?
Bermann - Ela é
muito cabeça dura.
- Às vezes eu acho que as questões subjetivas têm um
peso maior do que a gente costuma dar. Não sei...
Bermann - É,
mas eu também não sei, não tenho nenhuma proximidade maior com o
que ela está pensando agora. O que eu sei é que, no dia a dia, lá
no ministério, ela demonstrava uma capacidade muito reduzida de
ouvir. Ela pode até ouvir, mas as coisas na cabeça dela já estão
postas.
- Por que o senhor saiu do governo em 2004?
Bermann -
Porque venceu o contrato, e eu achei que não valia a pena
continuar. Há conhecidos meus que foram na mesma época que eu e
estão até hoje em Brasília. Não estão mais no ministério, mas
estão em Brasília. Acho que Brasília é uma cidade com um vírus
letal, que é a "Brasilite". A "Brasilite" se
compõe de um verme que entra no umbigo e toma a barriga da pessoa
de forma a ela achar que é o centro do universo. A partir daí,
mudam as relações pessoais, o que a pessoa era e o que ela passa
a ser. Eu mesmo perdi muitos amigos que começaram a empinar o
queixo. Fazer o quê? E isso faz parte do “modus vivendi”
brasiliense. Basta você ter um terno e uma gravata que você é
doutor. Eu acho que a gente não vai muito longe alimentando isso.
- O senhor participou da elaboração do programa de
Lula na campanha de 2002 e participou do primeiro ano de governo.
Está desiludido?
Bermann – Eu não aceito quando me
definem como: "Ah, você também é daqueles que estão
desiludidos, estão chateados...". Tem essa conotação, né?
Em absoluto. Eu não estou desiludido, chateado, bronqueado. Eu
estou indignado!
- Quando o senhor se desfiliou do PT?
Bermann –
Ah, quando o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos.